Seguidores

29 de março de 2009

Maria Madalena e o Santo Graal

Maria Madalena e o Santo Graal
A Mulher do Vaso de Alabastro
MARGARET STARBIRD
SUMÁRIO
PREFACIO pelo reverendo Terrance A. Sweeney, Ph. D. / 7
INTRODUÇÃO / 13
PRÓLOGO Miriam do jardim / 19
CAPÍTULO I - A Noiva Perdida / 36
CAPÍTULO II - O Noivo / 48
CAPÍTULO III - O sangue real e a Videira / 60
CAPÍTULO IV - O despertar do século XII / 77
CAPÍTULO V - As relíquias da Igreja secreta / 101
CAPÍTULO VI - Os artistas hereges e seus símbolos / 131
CAPÍTULO VII - O unicórnio e a dama / 147
CAPÍTULO VIII - A Noiva no folclore e na lenda / 159
CAPÍTULO IX - O deserto florescerá / 170
EPÍLOGO - O sagrado reencontro / 195
PREFÁCIO
Em um dos mais iluminados e dramáticos encontros da história da humanidade, Jesus disse a Pilatos:
- Por isso eu vim ao mundo, para ser testemunha da verdade. Todos os que estão ao lado da verdade ouvem a minha voz.
- Verdade? O que é isso? - retrucou Pilatos.
Pilatos sabia que Jesus não era culpado de crime nenhum, mas mesmo assim o condenou à crucificação. A "verdade" da inocência de Jesus estava bem diante de seus olhos, porém ele a ignorou. Em vez disso, concentrou-se nos poderes que precisava enfrentar: o de César e o do Templo. Pilatos sacrificou a vida de Jesus e a verdade para proteger a si mesmo das forças religiosas e políticas que o ameaçavam.
Há uma lição penosa, mas extremamente importante, para se tirar desse encontro: a verdade não é definida pelo poder político nem pela convicção religiosa. Jesus não era culpado de um crime porque as autoridades do Templo e a sentença de Pilatos simples­mente assim o declararam, da mesma maneira que o Sol não gira em torno da Terra somente porque a Igreja Católica estabeleceu que isso era um fato. A verdade não é determinada pelo desejo humano nem por decretos - ela significa a harmonização da mente e do coração humanos com o que realmente é.
Parece-me necessário dizer tudo isso porque, com muita freqüência, o poder, a opinião pública e a tradição são vistos como sinônimos da verdade. Os ensinamentos da Igreja Católica Romana sobre a Sagrada Família são um exemplo gritante. Segundo esses preceitos, José nunca teve relações conjugais com sua mulher, Maria deu à luz um único filho - Jesus - e permaneceu virgem ale o dia de sua morte. E Jesus nunca se casou.
Fui apresentado a esse conceito da Sagrada Família nos 12 anos em que fiz os cursos fundamental e médio em uma escola católica. Além dos adicionais 23 anos de educação jesuítica e formação sacerdotal. Impregnado dessa tradição, reforçada pela idéia de que "com Deus tudo é possível': aceitei alegremente essa imagem como algo completamente coerente com a singularidade das revelações de Deus." Com essa visão formada, eu considerava uma grave afronta qualquer desconfiança em relação à virgindade de Maria, José ou Jesus. Assim como Margaret Starbird, que ficou estarrecida e chocada com a tese de que Jesus era casado, eu também aceitava os ensinamentos da Igreja sobre a castidade da Sagrada Família como uma sacrossanta verdade.
Entretanto, após dez anos de pesquisas sobre as origens históri­cas das leis da Igreja relacionadas ao celibato sacerdotal, finalmente percebi que um grave preconceito - para não dizer neurose - per­meava as atitudes dessa instituição quanto à intimidade conjugal. Esse preconceito, originário do gnosticismo e do maniqueísmo, deixou uma ressonante mensagem de que a intimidade conjugal era, no máximo, tolerável ou mesmo uma perpetuação pecaminosa do mal no mundo.
Marcião, um dos mais convictos cristãos gnósticos, concedia o batismo e a Eucaristia somente às virgens, viúvas e pessoas casadas que concordassem em não praticar o sexo. Para os marcionitas, a natureza era um mal e, como não queriam trazê-lo para a Terra, abstinham-se do casamento. Julius Cassianus, outro gnóstico, afirmou que os homens se transformam em verdadeiras bestas durante o ato sexual e que Jesus veio ao mundo para evitar que os seres humanos copulassem.
Santo Ambrósio considerava o casamento um "fardo mortificante" e exortava qualquer um que pensasse em se casar a ter cuida­do com a escravidão e a servidão do amor conjugal. Para Tatiano, a relação sexual era uma invenção do diabo, e a vida cristã tornava­-se "impensável fora dos limites da virgindade". Agostinho afirmou que nada conseguiria puxar com mais facilidade "a mente do homem das alturas para baixo do que as carícias de uma mulher e aquela junção de corpos sem a qual não se pode ter uma esposa”. Justino Mártir era tão avesso à intimidade conjugal que não podia imaginar Maria concebendo Jesus por meio do sexo. Em vez disso, ele afirmou que ela concebeu ainda virgem. Orígenes, que acreditava que Jesus fizera voto de castidade, castrou a si mesmo.
Essa presunção sobre as relações sexuais estava tão profundamente arraigada que a Igreja, a partir do século IV, criou leis proibindo que os sacerdotes casados fizessem sexo com suas esposas e que tivessem filhos. Aos que se recusaram a cumprir essas leis anticristãs e antiéticas, sanções cada vez mais severas foram impostas, como multas, espancamentos públicos, prisão, exoneração do sacerdócio e invalidação de seus casamentos. Além disso, o Papa ordenou que suas esposas e seus filhos servissem como escravos da Igreja.
O meu despertar para essa neurose sexual presente nas doutrinas da Igreja me deixou profundamente abalado. Seria possível que essas atitudes distorcidas sobre a intimidade conjugal tivessem, de forma significativa, ajudado a moldar os ensinamentos sobre a Sagrada Família? Seria possível que o desdém da Igreja pelas relações sexuais tivesse resultado em uma representação de Jesus, Maria e José que não correspondesse à verdade? E se, de fato, Jesus não tiver sido o único filho de Maria? Nesse caso, será que a própria Maria não se sentiria ferida por ser considerada a mãe virgem de um único filho? Não seria isso uma negação de seus outros filhos e uma afronta à verdade de seu amor íntimo por seu marido? Não. Seria isso um tremendo desserviço à fé cristã?
O Evangelho de Mateus afirma: "Enquanto Jesus ainda falava ao povo, eis que sua mãe e seus irmãos apareceram ali e pediram para falar com ele." Em Marcos 3:31 há: "Chegaram sua mãe e irmãos e, por estarem eles do lado de fora, mandaram chamá-lo." Contudo, em Lucas 8:19: ."A mãe e os irmãos de Jesus chegaram, mas não podiam se aproximar dele por causa da multidão”. E em Mateus 13:55-56: "Não é este o filho do carpinteiro? Não é Maria sua mãe? Não são seus irmãos: Tiago, José, Simão e Judas? E suas irmãs não vivem todas entre nós?" São Paulo, em 1 Coríntios 9:5, diz: "Acaso não temos o direito de deixar que nos acompanhe uma mulher, como o fazem os outros apóstolos e os irmãos do Senhor e Pedro?" Essas evidências das Escrituras dificultam bastante a aceitação da afirmativa da Igreja de que José e Maria não tiveram outros filhos além de Jesus e que o casamento deles era, desde o começo, virginal.
Maria não é a mãe virgem de um único filho simplesmente porque os ensinamentos da Igreja assim o declaram. Existe uma verdade sobre sua prole e suas relações matrimoniais com José. Professar essa verdade é o que os honra. Se, realmente, Maria teve vários filhos e filhas, como as Escrituras aparentemente atestam, não a estaremos respeitando se acreditarmos ou afirmarmos que ela deu à luz um único filho e morreu virgem. Da mesma forma, Jesus não foi um celibatário só porque a Igreja prega isso. Não há nada na Bíblia que prove que ele nunca se casou nem que tenha feito uma promessa ou um voto de jamais se casar.
O estudioso judeu Ben-Chorin apresenta uma "cadeia de provas indiretas" para comprovar sua crença de que Jesus era casado. Nos tempos de Jesus, o judaísmo considerava o casamento uma obediência ao mandamento de Deus que diz: "Crescei e multiplicai­-vos." Lucas 2:51-52 afirma que Jesus, vivendo sob a autoridade dos pais, "cresceu em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens”. Ben-Chorin argumenta que teria sido muito mais provável que os pais de Jesus, como era costume na época, tivessem procurado uma noiva para o filho e que Jesus, como todos os rapazes - principalmente os que estudavam a Tora -, tivesse se casado. Caso contrário, teria sido ainda mais criticado em razão dessa falta pelos fariseus que se opunham a ele. E São Paulo, ao apresentar razões para enaltecer o valor do celibato, logicamente teria citado a própria vida de Jesus como exemplo, caso este fosse um celibatário. Mas ele nunca fez tal afirmativa. Portanto, Ben-Chorin conclui: Jesus era casado.
Por outro lado, surge a questão: se Jesus se casou, por que não existem nas Escrituras menções específicas a esse fato ou ao nome de sua esposa? A resposta de Margaret Starbird a essa pergunta é que a ameaça física à vida da mulher de Jesus teria sido motivo suficiente para excluir o seu nome de todos os escritos da época. Essa explicação é bastante plausível, especialmente se levarmos em consideração as severas punições sofridas pelos primeiros seguidores de Jesus. Ela diz ainda: "Eu não posso provar que Jesus se casou nem que Maria Madalena era mãe de seu filho... Mas posso constatar que esses são dogmas de uma heresia amplamente aceita na Idade Média e que seus resquícios estão presentes em numerosos trabalhos de arte e literatura. Ela foi veementemente atacada pela hierarquia da Igreja de Roma, mas conseguiu sobreviver, apesar da incansável perseguição que sofreu”.
Questionar os dogmas da fé pode ser algo extremamente difícil e ameaçador, ainda mais quando lidamos com um tema tão carrega­do de emoções quanto a identidade sexual da Sagrada Família. É muito mais reconfortante aceitar os ensinamentos oficiais e as tradições do que admitir a pura verdade. Embora a Igreja Católica tenha contribuído positivamente - e muitas vezes - para o desen­volvimento da espiritualidade e da civilização, sua atitude quanto à sexualidade humana apresenta graves falhas. Se esses equívocos criaram uma imagem irreal de Jesus, Maria e José, então cabe aos cristãos conscientes fazer todo o possível para descobrir a verdade sobre a Sagrada Família. É claro que essa busca requer sacrifícios e expõe os que a desejam a injúrias e ao escárnio. Coragem e pro­fundo respeito pela verdade são virtudes necessárias a essa peregrinação, pois a jornada é repleta de ameaças, tentações e ilusões.
Este livro é uma corajosa exploração de uma questão extremamente delicada. Ele tenta descobrir o sentido do Santo Graal e resgatar a Noiva Perdida de Jesus. Ainda não existem provas do casa­mento ou do celibato de Jesus, e a própria autora admite que, por mais informativas e significativas que sejam as suas descobertas, elas não atestam sua tese. Mas, até que a Igreja possa oferecer provas concretas de que Jesus nunca se casou, aqueles que buscam - com seus corações, mentes e almas - a verdade sobre ele e sua família não devem ser temidos nem desprezados, e sim ampla­mente louvados.
REVERENDO TERRANCE A. SWEENEY, PH.D.
Mestre em Artes de Comunicação e
Doutor em Teologia e Humanidades
INTRODUÇÃO
O cristianismo institucional, que tem alimentado a civilização ocidental há mais de dois mil anos, pode ter sido construído sobre uma gigantesca falha em sua doutrina: a
Negação do feminino. Durante muitos anos convivi com uma vaga sensação de que algo estava radicalmente errado com o meu mundo. Sentia que, por um período longo demais, o feminino em nossa cultura vinha sendo desprezado e desvalorizado. Mas foi somente em 1985 que encontrei provas documentais de uma devastadora fratura na história cristã. Em abril daquele ano, sabendo do meu grande interesse pelas Escrituras judaico-cristãs e pela origem do cristianismo, uma amiga me indicou o livro O Santo Graal e a linhagem sagra­da. Após essa leitura, fiquei completamente atônita.
Minha primeira reação foi achar que os autores - Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln - tinham que estar errados. Sua obra era quase uma blasfêmia. Eles sugeriam que Jesus Cristo havia sido casado com a "outra Maria" citada nos Evangelhos: a que chamavam "a Madalena': a mulher que, na arte ocidental, era mostrada carregando um vaso de alabastro - a santa a quem a Igreja chama de prostituta penitente." Não fiquei apenas chocada com essa idéia, mas profundamente abalada. Como a Igreja não teria mencionado esse fato caso fosse verdade? Uma afirmação de tamanha importância não poderia ter sido negligenciada durante os dois mil anos de história dessa instituição! Entretanto, as evidências colecionadas por esses escritores sugeriam que a verdade havia sido suprimida de maneira implacável pela Inquisição.
Como filha leal da Igreja Católica Romana, logo presumi que os autores de tamanha heresia estavam enganados. Mas a tese central - de que Jesus teria sido casado - não me deu descanso. Ela me assombrava. E se fosse verdade? E se Maria Madalena, a suposta mulher de Jesus, tivesse sido apagada da história, e a Igreja, que se iniciava, tivesse continuado a se desenvolver sem a delicada presença dessa mulher?
Pensar sobre as implicações de tão terrível perda para a Igreja e para a humanidade era algo insuportável para mim. Aos prantos, orei para entender essa versão herética do Evangelho. Eu sabia que precisava descobrir a verdade. Amparada em meus conhecimentos acadêmicos em literatura comparada, lingüística e estudos medievais e bíblicos, enxuguei as lágrimas e comecei a pesquisar a heresia, presumindo que logo encontraria meios de refutá-la. O livro envolvera muitas áreas do meu interesse pessoal e da minha formação profissional: religião, civilizações medievais, arte, literatura e simbolismo. Eu havia ensinado estudos bíblicos e educação religiosa durante vários anos, por isso conhecia bem o terreno em que estava pisando.
No início, imaginei que desmascarar a heresia seria uma tarefa simples. Fui diretamente às pinturas dos artistas citados pelos autores de O Santo Graal e a linhagem sagrada como coniventes com a heresia do Graal. Examinei os símbolos naqueles trabalhos, comparando-os com as marcas-d'água dos albigenses (hereges que se disseminaram no Sul da França entre 1020-1250 d.C.) que eu havia encontrado alguns anos antes em uma obscura obra de Harold Bayley, The Lost Language of Symbolism (A linguagem perdida do simbolismo). Fiquei desconcertada ao descobrir que as produções daqueles artistas medievais continham claras referências que reforçavam a heresia do Graal. Incapaz de refutá-la com base nesse fato, prossegui em minha busca.
A pesquisa acabou por me levar às profundezas da história européia, da heráldica, dos rituais da maçonaria, da arte medieval, do simbolismo, da psicologia, da mitologia, da religião e das Escrituras judaicas e cristãs. Em todos os lugares nos quais pro­curava, encontrava evidências do feminino que haviam sido perdi­das ou negadas pela tradição judaico-cristã e das várias tentativas de devolver à Noiva a sua antiga e acalentada condição. Quanto mais eu me envolvia com o material, mais claro ficava que existia algo de real nas teorias propostas no livro que eu lera. E, aos poucos, fui me rendendo aos dogmas centrais da heresia do Graal, a mesma teoria que eu havia me proposto a desacreditar.
Ao selecionar o material para este livro, trabalhei baseada na teoria de que onde há fumaça há fogo. Quando tantas evidências de fontes tão numerosas e diversas podem ser reunidas para compro­var uma única hipótese, há uma boa razão para levá-la a sério. Portanto, poderia mesmo existir alguma verdade nos rumores que persistiram por dois mil anos e que vieram à tona mais recente­mente, para que todos pudessem ver, nos filmes Godspell - A esperança, Jesus Cristo superstar e A última tentação de Cristo, os quais mostram o relacionamento de Jesus e Maria Madalena como algo muito significativo e com uma intimidade toda especial.
Eu não posso provar que os dogmas da heresia do Graal são verdadeiros - nem que Jesus se casou, nem que Maria Madalena era mãe de seu filho. Não posso sequer provar que Maria Madalena era a mulher do vaso de alabastro que ungiu Jesus em Betânia. Mas posso constatar que esses eram dogmas de uma heresia amplamente aceita na Idade Média e que seus resquícios estão contidos em numerosos trabalhos de arte e literatura. Ela foi veementemente atacada pela hierarquia da Igreja de Roma, mas conseguiu sobre­viver, apesar da incansável perseguição que sofreu.
A heresia que manteve viva a outra versão da vida de Jesus foi impiedosamente perseguida, julgada e condenada à extinção. Mas a história do Noivo Sagrado/Rei de Israel mostrou-se virulenta demais, até para a Inquisição. E continuou a frutificar de tempos em tempos, como uma robusta videira que se espalha debaixo da terra e depois vem à superfície. Ela apareceu em situações em que a Inquisição e a Igreja não podiam arrancar suas raízes - nos contos do folclore europeu, em sua arte e literatura -, sempre escondida, freqüentemente codificada em símbolos, mas onipresente. Manteve viva a esperança da linhagem davídica, que muitas vezes era chamada de "Videira"
Existem várias possibilidades sobre a heresia do casamento de Jesus. Talvez ela seja autêntica e tenha sobrevivido porque os que a defendiam não apenas acreditavam nela como sabiam que era verdadeira (por exemplo, por meio de provas como o célebre "tesouro dos templários': sob a forma de documentos ou artefatos genuí­nos"). Ou talvez ela tenha sido disseminada na tentativa de devolver o princípio do feminino perdido ao dogma cristão, que estava claramente desequilibrado em favor do masculino.
Essa restauração do equilíbrio dos opostos, base da filosofia clássica, pode ter sido considerada necessária para o bem-estar da civi­lização. O culto do feminino floresceu em Provença no século XII. Tentativas confluentes dos cabalistas judeus de resgatar a Senhora Matronit como a esposa perdida de Yahweh, na mitologia judaica, comprovam o fato de que esse resgate do feminino era visto como importante - ou mesmo vital. Um movimento semelhante acon­tece hoje no mundo ocidental, revelando-se em estudos junguianos na área da psicologia, nos conceitos asiáticos do yin/yang e na cons­ciência da deusa. Também são muito significativas as numerosas aparições recentes da Virgem Maria, a única imagem de deusa permitida pela cristandade. E suas imagens têm sido vistas derramando lágrimas em igrejas cristãs por todo o mundo. Esses fenômenos vêm ganhando destaque na mídia nos últimos anos. Até as pedras choram! O feminino desprezado e esquecido está suplicando para ser reconhecido e abraçado por nossa era moderna.
A perda do feminino teve um impacto desastroso em nossa cultura. Masculino e feminino estão profundamente feridos neste início do terceiro milênio. As dádivas do feminino não foram aceitas ou apreciadas por completo. Enquanto isso, o masculino, frustrado pela incapacidade de harmonizar suas energias com um feminino bem desenvolvido, continua a liderar o mundo empunhando a espada, brandindo armas irresponsavelmente, atacando com violência e destruição.
No mundo antigo, o equilíbrio entre as energias opostas era compreendido e respeitado. Mas, no mundo moderno, as atitudes e os atributos masculinos têm dominado. A adoração do poder e da glória do princípio masculino/solar está a poucos passos da "adoração do filho': um culto que, com freqüência, produz um homem mimado e imaturo - zangado, frustrado, entediado e, muitas vezes, perigoso." Sem poder se integrar à sua "outra metade", o masculino se exaure. O resultado final do princípio feminino desvalorizado não é apenas a poluição ambiental, o hedonismo ou a criminalidade desenfreada. O resultado fundamental é o holocausto.
Este livro é uma exploração da heresia do Santo Graal e um argumento a favor do resgate da mulher de Jesus, com base em importantes provas circunstanciais. É também uma busca do significado da Noiva Perdida na psique humana, na esperança de que seu retorno ao nosso paradigma de completude possa nos ajudar a restaurar a terra infértil. Aqui, registrei os resultados da minha busca pessoal pela Noiva Perdida na história cristã. Procurei explicar de que modo ela foi esquecida e como esse fato tem sido devastador para a civilização ocidental. Tentei, ainda, visualizar o que aconteceria se conseguíssemos restituí-Ia ao paradigma.
Os anos que passei pesquisando acarretaram conseqüências. Levei o assunto a sério. Lutei com o material deste livro e batalhei para lhe dar forma e substância. O trabalho foi longo e difícil. Muitas vezes, temi que ele me virasse do avesso. Doutrinas nas quais acreditei pela fé tiveram que ser arrancadas e descartadas para que novas crenças fossem plantadas e cuidadas até formarem raízes. Toda a estrutura da Igreja Católica da minha infância precisou ser desmontada para deixar à mostra a perigosa falha existente em suas fundações, permitindo que um novo sistema de crenças pudesse ser cuidadosa­mente reconstruído quando a fissura tivesse se fechado. Esse proces­so durou muitos anos. Em algum momento, desisti de ser apologista da doutrina e embarquei na busca pela verdade. Estou dolorosa­mente consciente de que minhas conclusões não são ortodoxas, mas isso não significa que não sejam verdadeiras.
Muitas pessoas estão se tornando cada vez mais conscientes do abismo que separa as descobertas dos modernos estudiosos da Bíblia da versão de cristandade ensinada nos púlpitos das igrejas. Espero que este livro possa ser uma ponte que transponha esse hiato. Ao escrevê-lo, tomei a liberdade de comparar passagens em várias Bíblias e escolher as palavras que expressavam melhor o que eu pretendia dizer. A Bíblia que usei por vários anos, de onde a maioria de minhas citações foi extraída, é a Saint Joseph New Catholic Edition (Nova Edição Católica de São José), de 1963, somente porque ela é a Bíblia com a qual tenho maior familiaridade. Em vários casos, os textos escolhidos foram da Nova Versão Internacional (NVI) e estão identificados com essa sigla. Tive a preocupação de manter a coerência com relação ao uso dos nomes e à numeração dos livros e salmos encontrados no cânon protestante da Bíblia.
Espero que este livro inspire outras pessoas a começarem a sua própria busca pelo tesouro mais precioso da cristandade, uma pérola de valor inestimável: o Santo Graal.
PRÓLOGO
Miriam do Jardim
Neste relato fictício da Noiva Perdida, os nomes hebraicos de Yoshua, Miriam e Yosef são usados para Jesus, Maria (irmã de Lázaro de Betânia) e José de Arimatéia.
Ela sentiu um calafrio ao enrolar-se no manto e cobrir o corpo delgado. O tempo estava frio. O sol flamejante já havia se escondi­do além do muro do jardim, atrás do Templo do Monte Sião. As fragrâncias no ar a acalentavam, suavizando seus nervos retesados, enquanto permanecia sentada no banco de pedra sob a amendoeira. O brilho prateado do luar lançava sombras na passagem que levava até o portão. Ela esfregou os dedos dos pés na areia macia, formando pequeninos montes de terra seca.
Um leve barulho de passos a assustou. Tentou distinguir de quem era o vulto cujo rosto estava na sombra e que tinha o corpo coberto por um manto escuro. O homem a observou em silêncio por alguns instantes. "Como um passarinho. Tão vulnerável”, pensou ele. O homem falou num sussurro, tentando não assustá-la.
- Shalom, Miriam. Sou eu, Yosef.
A figura esguia à frente de Yosef relaxou visivelmente ao ouvir aquela voz familiar.
- Oh, Yosef - sua voz ficou embargada.
Ele a olhou intensamente, com enorme compaixão. Ela estava pálida e emocionada, mergulhada em imensa dor. Ele ergueu a mão, um gesto involuntário para transpor a escuridão perfumada que os separava naquele jardim à luz da lua.
- Yosef - sussurrou ela -, não sei se vou conseguir suportar. Ele tentou me prevenir, e eu pensei que havia entendido.
Ela tremia. Seu corpo estremecia na escuridão.
Yosef tomou-a pelos ombros e segurou-a com firmeza. Ele não havia percebido a profundidade de sua própria dor até aquele momento. O cabelo longo e escuro da moça refletia a luz da lua, as lágrimas faziam seus olhos brilharem.
- Miriam - disse ele, suavemente. Mas parou de falar, hesitante. Será que ela já não estaria angustiada demais? Mas ele prometera ao amigo que a protegeria. E só havia uma maneira de fazê-lo: pre­cisavam sair dali imediatamente, aproveitando a escuridão da noite. Ninguém poderia prever quando as autoridades apareceriam para buscá-la.
- Miriam, eu recebi um aviso. Temos que sair de Jerusalém esta noite. Não é seguro você continuar aqui. Pilatos e Herodes Antipas podem estar à sua procura.
Ela se virou de costas para Yosef, os olhos perdidos na escuridão.
Lentamente, voltou-se de novo para ele.
- Você acha mesmo que preciso fugir? - sua voz era quase inaudível.
Ele hesitou.
- Precisa, sim, Miriam. É a única maneira. Prometi a Yoshua que a protegeria com a minha vida. Não há outra escolha.
Ela fez um gesto, demonstrando compreender.
- Está certo, Yosef. Eu sei. Ele leu para mim as palavras de Miquéias, o profeta. Eu compreendo. É por causa da promessa. Vou fazer como você me pediu. Mas o que faremos com Marta e Lázaro?
Yosef balançou a cabeça.
- Eu não lhes contei para onde iremos. Disse apenas que vou escondê-la na cidade. Até que o perigo acabe, ninguém deve saber que vamos partir. Por enquanto, Marta e Lázaro ficarão aqui. Eles dirão que você está doente, para que não sintam sua falta. Mais tarde, mandaremos buscá-los.
Yosef havia planejado tudo: viajariam como pai e filha, evitando ao máximo atrair a atenção. Ninguém deveria saber qual era a iden­tidade da jovem que o acompanhava. As autoridades pensavam que eles tentariam fugir pelo mar, por isso os portos seriam os locais mais perigosos. Em vez disso, preferiu seguir com ela por terra, atravessando o deserto. Ele havia separado alguns artigos de pri­meira necessidade para a jornada, mas dependeriam de amigos para ajudá-los até que chegassem ao destino planejado. Fugiriam para o Egito - para Alexandria.
Ele sorriu, um sorriso abatido. A juventude e a beleza de Miriam eram tão cativantes... A Magdal-eder, a fortaleza da filha de Sião, a "torre do rebanho". Ela precisava partir, aventurar-se pelos campos, viver no exílio. Exatamente como o profeta Miquéias prenunciara. Mas, por meio dela; a soberania seria devolvida a Sião. Mais uma vez, ele se sentiu maravilhado ao se lembrar do amigo que lhes mostrou os versículos da profecia de Miquéias, falando do exílio, do retorno e do restabelecimento da casa real de Davi. Ele, Yosef de Arimatéia, recebera a responsabilidade de zelar pela segurança de Miriam. E não decepcionaria o amigo.
- Vamos partir agora - disse ele, suavemente. - Deixei os jumentos amarrados no portão. Falei com Lázaro e Marta. Vamos mandar buscá-los quando o perigo cessar. Prometo.
Ela sabia que o amigo estava certo. Ficara o dia inteiro pensando que seria preciso fugir do ódio e da inveja de Herodes Antipas, tão inseguro do próprio trono ao ponto de não tolerar nenhum rival. E dos romanos também. Eles temiam uma insurreição da nação judaica. O ódio dos judeus pelas forças romanas de ocupação era intenso. E seu amor e entusiasmo pelo Filho de Davi, que fora tão brutalmente executado, poderia iniciar uma revolução a qualquer momento. Era melhor que fugisse, para que os rumores sobre o desaparecimento do corpo não gerassem um confronto suicida do povo contra o poder das legiões romanas. Mesmo sendo ainda tão jovem, ela sabia disso. Seu marido lhe havia explicado tudo, segurando-a gentilmente enquanto ela derramava lágrimas no aconchego de seus ombros. Ele tentou confortá-la; e, pelo bem do homem a quem amava, ela tentara ser corajosa. Mas não conseguiu e pôde ver nos olhos dele toda a angústia que sentia pelo destino da mulher.
- Estou pronta, Yosef. Vamos partir.
Sem dizer mais nenhuma palavra, ela olhou fixamente para o jardim, sentindo um perfume de visco e lírios, a poeira no ar. "Estou deixando a minha casa': pensou. "Talvez para sempre." Meu irmão e minha irmã, a casa onde cresci, o jardim onde brincávamos. O jardim onde, pela primeira vez, encontrei o meu Senhor. Nosso jardim reservado". Ela fez uma pausa, perdida em meio às lembranças.
Levando Miriam pela mão, Yosef caminhou lentamente até o portão da casa. A areia fria da pequena passagem pressionava seus pés, pois as sandálias abertas não eram capazes de protegê-las. Ele ajudou a viúva do amigo a montar no jumento e desamarrou-o. Andando devagar, o cajado na mão, ele conduziu o animal, levando-o para longe da vila. De vez em quando, olhava para Miriam. Ela parecia mergulhada em seu mundo interior e não percebia mais a presença do homem que a acompanhava. Ele seguia ao lado dela em silenciosa comunhão, conduzindo-a pela estrada sinuosa distante da casa onde ela vivera a infância, afastando-se de Betânia e do Monte das Oliveiras, mergulhando no deserto, no caminho iluminado pela luz da lua.
Ela podia sentir o cheiro e o gosto da areia que, transportada pelo vento do deserto, se lançava contra o seu corpo. Os lábios entreabertos, os olhos queimando. Miriam os mantinha quase fechados para protegê-los do sol ardente e da areia que esfolava. Enrolou-se mais no manto, formando um casulo de lã branca que a protegia da hostilidade da natureza. Yosef caminhava ao seu lado em silêncio, perdido em seus próprios pensamentos. De vez em quando, ele procurava saber se ela estava muito cansada, inco­modada com a aridez que os envolvia - zelava pelo seu conforto, embora ciente de que precisavam seguir em frente e sem demora.
Sentada no jumento, Miriam balançava suavemente de um lado para o outro, e os pensamentos se tornavam difusos, como acontecera tantas vezes nos últimos dias. Os devaneios não se deixavam perturbar por distrações exteriores, uma vez que a paisagem era sempre igual. Lembrou-se de quando conheceu Yoshua. Ela estava sozinha no banco do jardim de sua casa, em Betânia. Seu irmão Lázaro levou Yoshua até o jardim, e os dois caminharam um pouco na sombra fria, falando em voz baixa, sem perceberem a presença dela. Miriam já ouvira falar daquele homem - quem não ouvira? Ele era aclamado por toda a Judéia. Ela sabia o quanto seu irmão o admirava. Agora, vendo-o de perto, também se sentiu atraída. Era um homem mais alto do que a média, de feições magras e alon­gadas e lindas mãos. O cabelo e a barba estavam cuidadosamente aparados, os olhos eram escuros e intensos. Mas a característica que mais a impressionava era a segurança tranqüila, um ar de autoridade e integridade que lhe realçava a estatura.
Então, Lázaro a descobriu, silenciosa, sob a amendoeira. Ele se aproximou com Yoshua e lhe disse o nome da irmã. Mas não foi preciso apresentá-los: quando se olharam pela primeira vez, ela percebeu que ele já a conhecia. Ele sorriu:
- Shalom.
- A paz esteja convosco - ela respondeu àquele cumprimento ancestral.
O olhar que ele lhe lançou a fez sentir-se linda. Podia perceber isso nos olhos dele. E, naquele instante, Miriam soube que amaria para sempre Yoshua, o amigo de seu irmão. Confusa, ela desviou o olhar para o chão e corou, deixando as longas tranças negras cobrirem seu rosto.
- Vou pedir a Marta que prepare uma bebida para refrescá-lo­ murmurou ela. E saiu correndo do jardim, quase tropeçando de tanta pressa.
Vários meses depois, eles se casaram. Um sorriso veio aos seus lábios quando se lembrou de como ficara surpresa ao ouvir de Lázaro que ele havia aceitado o forasteiro da Galiléia como cunha­do. Herdeira das terras que faziam fronteira com Jerusalém, ela seria a mulher de Yoshua de Nazaré, descendente do rei Davi.
O casamento teve importância dinástica, unindo as famílias de dois grandes amigos: Davi, filho de Jessé, e Jônatas, filho de Saul. A história da amizade entre os dois era contada havia vários séculos nas casas dos judeus. Como Lázaro explicara à irmã, o casamento dela com Yoshua também envolvia questões políticas. Mas era, acima de tudo, a realização de uma profecia. Lázaro e seus amigos zelotes ­membros da seita e do partido político judaico Zelote, uma facção fundamentalista - estavam convictos de que os tetrarcas herodianos que colaboraram com os romanos haviam usurpado o trono de Davi. Estavam convencidos, ainda, de que Deus enviaria um Messias davídico que libertaria a nação da tirania de Roma, dando início à era de paz e prosperidade prometida pelos profetas. O forasteiro da Ga­liléia tinha a genealogia correta. E não era, também, um fazedor de milagres e prodígios, curando doentes e exorcizando demônios? Ele era, claramente, uma escolha de Deus. Agora, deveria optar por uma noiva na tribo de Benjamim, pois estava escrito no primeiro livro da Tora que o cálice de prata encontrava-se escondido na saca de Benjamim. De acordo com seus inspiradores mestres, isso queria dizer que uma mulher da tribo de Benjamim seria o instrumento para a reconciliação e o restabelecimento de Israel.
Nada disso tinha importância para Miriam. Os mais velhos podiam apresentar os motivos que quisessem para a decisão que tomaram. Mas não eram capazes de ouvir o sangue cantarolando em suas veias, não tinham como escutar a música silenciosa do seu coração: "Não faz diferença por que ele me escolheu, o importante é que fui a escolhida!"
Refletindo sobre tudo isso, ela procurou refúgio no jardim mura­do, no banco que ficava à sombra da amendoeira. Mais tarde, Yoshua a encontrou ali. De pé ao lado dela, em completo silêncio, ele lhe estendeu a mão. Miriam olhou-o fixamente, hesitante e com certa timidez, e então se aproximou para aceitá-la. E, naquele toque, todas as feridas que conhecera até aquele instante foram curadas.
O casamento foi realizado na casa de Simão, o leproso. Somente alguns amigos íntimos e suas famílias foram convidados. Era necessário manter o fato em segredo para que Herodes Antipas não descobrisse que uma herdeira de Benjamim unira-se em matrimônio a um filho da casa de Davi. Miriam não se incomodava por não ser reconhecida em público como a mulher de Yoshua. Só lhe importava o fato de ser ela a noiva do homem alto da Galiléia, cujos olhos escuros a acariciavam, fazendo com que se sentisse feliz e completa.
Os convidados estavam tomados de alegria, acreditando que a linhagem de Davi se restauraria e Sião seria libertado. Assim, todas as nações poderiam ir a Jerusalém adorar o Deus Único em seu Templo, e a Palavra de Deus, proferida pelos profetas hebreus, seria consumada. Os cântaros de pedra do judaísmo estavam, naquele dia, cheios de um novo vinho: a esperança messiânica no futuro.
Miriam sentou-se em silêncio ao lado do marido, esguia e bela, os olhos negros brilhando. Ela compreendera os objetivos políticos do irmão e de seus amigos zelotes, mas não os considerava relevantes. Tudo o que importava era aquele homem alto e bonito com quem agora estava casada. A promessa do salmista estava guardada em seu coração: "Tua mulher será em teu lar como uma videira fecunda”. Amém. Shalom.
Naquela noite, ele a tomou em seus braços. Chamou-a de "amada" e seu regozijo foi incomensurável. A brisa matinal levou ao quarto o perfume do visco do jardim, e eles adormeceram.
Yosef falou mais uma vez, interrompendo os pensamentos dela. - Miriam, Miriam. Por favor, beba um pouco d'água.
Num instante ela retomou ao presente, tirando a areia dos olhos com cuidado. Yosef estava lhe oferecendo água do cantil.
- Obrigada, Yosef. Você é muito amável.
Ele sorriu. Sentia enorme ternura por sua rainha. A segurança dela era sua missão sagrada. Prometera a Yoshua. Era um tributo que pagava com alegria ao amigo. Por meio dela, a Magdal-eder, a soberania, seria restaurada. Mas agora ela precisava correr pelos cam­pos, expiar no exílio, como o profeta Miquéias dissera. Sentiu-se tomado de solidariedade por seu sofrimento. Miriam fora escolhida para tal papel, mas como teria sido mais fácil se não o tivesse sido!
- Chegaremos ao delta do Nilo amanhã, ao cair da noite - disse ele, tentando dar-lhe algum alento. Ele estava muito preocupado com o silêncio de Miriam, rezando para que não estivesse mergu­lhada na lembrança dos horrores daqueles últimos dias em Jerusalém. Ele queria que ela tivesse ficado em Betânia, com Marta, depois que os soldados do Sinédrio levaram Yoshua, mas ela insistiu em acompanhar os passos do marido até ele chegar ao Gólgota.
Muitas outras mulheres permaneceram com Miriam o dia inteiro, oferecendo apoio enquanto ela se mantinha ao lado da cruz. Mas a crueldade daquela execução romana certamente deve ter causado uma enorme ferida em seu coração, a qual permanecia aberta. "Como a lança do centurião que atravessou o corpo de Yoshua, causando a sua morte': pensou Yosef, com pesar." Os amigos tinham a esperança de poder reanimá-lo após retirá-lo da cruz, antes do pôr-do-sol, mas era tarde demais. Poderia Yahweh ter interferido? De certa forma, ele deixara que seu plano fosse frustra­do por um centurião romano com uma lança. Ou teria sido um plano dos homens que terminou mal? De qualquer maneira, Yoshua morrera por causa dos ferimentos. Agora, a única esperança que restava para o reino de Deus na Terra parecia ser a mulher exausta, montada no jumento, bebendo de seu cantil e tentando proteger o rosto do causticante sol do deserto. Pensou: "Ela é a esperança de Israel, porque carrega no ventre o filho dele."
Miriam enrolou-se no manto, tentando abrigar-se do sol implacável. Na boca, o gosto da areia que lhe alfinetava a pele. Os lábios ressecados estavam inchados.
Uma onda de ternura tocou o coração de Yosef quando olhou para aquela mulher. Como ele havia implorado a Deus que a abençoasse com uma criança saudável, fruto de seu casamento com Yoshua. A promessa dos profetas - de que o Senhor restituiria o trono de Israel à casa de Davi - um dia deveria ser cumprida. "Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes, um renovo", previra Isaías. Seria um rei piedoso e justo, que levaria a efeito o sereno reino de Deus da Terra. As esperanças que tiveram foram tão grandes! Que terrível choque fora ver Yoshua ser levado à crucificação, lutando sob o grotesco fardo da pesada barra da cruz, caindo e tentando levantar-se para prosseguir no seu caminho pelas ruas de Jerusalém. Os sonhos de todos eles foram destruídos quando os sol­dados romanos pregaram o Filho de Davi na cruz. E O horror foi aumentado quando o centurião cravou a lança, rasgando Yoshua e perfurando seu coração. Agora, a esperança dos nacionalistas de Israel atravessava as areias abrasadoras do deserto do Sinai, montada num jumento, envolvida pela dor e por um manto branco.
- Miriam, você deve estar se sentindo desconfortável depois de tantas horas. Vamos parar para descansar? - Yosef quebrou o silêncio.
Um pálido sorriso surgiu no rosto dela. Compreendia a preocupação do amigo, mas não se importava com o próprio descon­forto físico. O sofrimento não conseguia mais penetrar o seu nível consciente. As feridas da longa jornada fundiram-se em uma única dor que a tomou por inteiro.
Miriam mergulhou novamente nos devaneios, embalada pelo incansável balanço das lentas passadas do jumento que seguia pelas infinitas dunas do deserto. Ela sabia que seria um casamento dinástico. Não esperava que Yoshua o visse com outros olhos. E sorria, agora, ao se lembrar da ternura do marido, da gentil preocupação com sua timidez. Ela não podia enfrentar as memórias amargas daqueles últimos dias. Yoshua não gostaria que ela revivesse tama­nho horror e agonia. Em vez disso, seus pensamentos voltaram a um tempo mais remoto. Eles não tiveram muitas oportunidades de estar juntos. "Não posso demorar, minha amada': dissera ele. ''As pessoas estão feridas e oprimidas. Estão aleijadas e cegas. Elas acreditam que Deus as abandonou em sua própria desgraça. Preciso voltar às ruas, tratar de suas feridas e curar seus corações partidos." E ela o deixava ir.
No início, ele parecia surpreso com seu poder de curar. Uma vez, disse à esposa que sentia esse poder sair dele quando alguém tocava suas vestes. Mas compreendeu que não era o seu poder, mas o poder de Deus que fluía por meio de suas palavras, de seu semblante. Sua presença inspiradora encantava os amigos e seduzia as multidões.
Miriam ficava profundamente agradecida quando ele voltava a Betânia, depois de várias semanas percorrendo os lugares mais distantes da Galiléia e da Judéia. Para ela, era suficiente sentar-se aos pés do marido, sorvendo suas palavras e sua presença, ocasionalmente atraindo sua atenção ou mesmo recebendo um sorriso. Não conseguia separar-se dele e ficava ali, muda, comprazendo-se com sua luz. Certa vez, sua irmã Marta ficara zangada por ter que assumir sozinha todas as tarefas necessárias para organizar uma refeição que. seria oferecida a um numeroso grupo de discípulos. Yoshua compreendeu-a e acalmou-a com palavras gentis, mas Miriam sentiu-se culpada e afastou-se do marido para ajudar a irmã no trabalho.
Nos últimos dias, Yoshua havia falado várias vezes sobre sua morte iminente. O povo começara a dizer que ele era o tão espera­do Messias, o Filho de Davi. As pessoas aglomeravam-se nas ruas, com folhas de palmeira nas mãos, como sinal de reconhecimento das profecias messiânicas de Miquéias e Isaías. Ele sabia que as autoridades romanas não tolerariam aquele tumulto entre as mas­sas e que a violência seria inevitável. Um confronto com o tetrarca e o governador romano levaria à agitação civil e ao derramamento de sangue. Ele precisava entregar-se aos romanos antes que conflitos ocorressem nas ruas, tirando a vida de inocentes. Yoshua falara a Miriam da profecia de Isaías sobre o servo sofredor. Ele tentou alertá-la. Depois, tomou-a nos braços para reconfortá-la, e a dor da esposa foi aplacada.
Nesse instante, algo despertou sua memória. "O salmo, é claro!" Agora, ela se lembrava por que ficara tão estarrecida quando vira os soldados romanos repartirem entre si as vestes de Yoshua, enquanto ele pendia da cruz, agonizando. Estava tudo nos salmos. Era con­tado há séculos: "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?" Traspassaram minhas mãos e meus pés. Repartem entre si as minhas vestes e lançam sorte sobre a minha túnica:' As palavras lhe feriam a alma quando ela se lembrava dos detalhes da crucificação no Gólgota. Um gemido escapou de seus lábios, e Yosef olhou para cima, mas algo no semblante dela impediu-o de falar. Não poderia importuná-la. Ela parecia estar em um lugar além do consolo, além do limiar da angústia, onde não poderia ser alcançada.
"Ele sabia", pensou Miriam. "Sempre soube." Foi por isso que me mostrou aquelas Escrituras - para que eu soubesse que as profecias de nosso povo foram cumpridas com a vida dele e para que nós reconhecêssemos que ele fora enviado por Deus:' Ela não compreendera isso totalmente, até aquele momento. Deus é tantas vezes desprezado e torturado por seus profetas. Deus está ferido: "Com um cajado, eles acertam o rosto do Rei de Israel': disse Miquéias." Ao ser crucificado, Yoshua mostrou a eles uma dimensão extrema do sofrimento de Deus.
Várias vezes, o marido repetira para ela as palavras do Cântico dos Cânticos, o hino do Casamento Sagrado. "Pois o amor é mais forte do que a morte", lembrava-se agora. É claro! Nos antigos cultos de sua terra, o Noivo-Deus morre em sacrifício e é enterrado. Então, três dias depois, ele ressuscita entre palavras de glória entoadas por aqueles que esperavam seu retorno. Ele trouxe fertilidade à terra, renovando-a por meio da morte e do renascimento.
Uma noite, enquanto Yoshua estava à mesa com seus amigos, Miriam pegou um pequeno vaso de alabastro contendo espicanardo, um bálsamo aromático que fazia parte de seu dote, e derramou-o sobre a cabeça dele. Afinal, não era ele o Filho de Davi, o Ungido, o verdadeiro rei de Israel, o Messias escolhido por Deus? Yoshua não fez objeção àquela atitude. Os discípulos murmuraram que Miriam estava desperdiçando o caro perfume, mas Yoshua havia entendido. Ao ungi-lo, ela o proclamou rei e noivo. "Ela me ungiu para o enterro", disse ele. Miriam chorou e ajoelhou-se ao lado dele, secando, com o cabelo, as lágrimas que caíram nos pés do amado.
Mesmo agora, ela ainda podia sentir a ternura do olhar de Yoshua. Lágrimas brotaram de seus olhos, e um enorme peso oprimiu-lhe o coração. "Preciso tentar não pensar nos momentos tristes”, refletiu. E então adormeceu, ainda montada no jumento conduzido por Yosef.
Depois de quase um mês de viagem, eles chegaram ao seu destino ao cair da noite, quando as sombras começavam a se estender pela cosmopolita cidade de Alexandria. Yosef levou o jumento pelas ruas sinuosas da cidade apinhada, procurando o bairro dos judeus. O alívio e a gratidão infinitos renovaram suas energias. Estavam, final­mente, salvos. Não seriam reconhecidos naquela cidade estrangeira, distante das garras dos usurpadores do trono de Israel, longe dos sacerdotes do Templo de Jerusalém e do governador romano da Judéia. A verdadeira rainha e seu filho, herdeiro do trono de Davi, encon­trariam refúgio ali. Um dia, por meio dela, a soberania seria devolvi­da a Sião, como Miquéias prometera. Mas, por enquanto, ela estava a salvo no exílio. O "Cetro" da ramificação de Jessé seria preservado e a linhagem continuaria por intermédio do filho de Miriam. Depois de algum tempo, o herdeiro de Davi retomaria a Jerusalém para reclamar o trono que lhe pertencia por direito. Seu reinado, então, seria instituído, como Deus prometera, pela voz dos profetas. Assim Yosef de Arimatéia acreditava. Ele encontrou a rua que procurava, encaminhou-se para a casa de seu amigo e bateu à porta.
Miriam acordou com o barulho de pancadas. O som ecoava em seus ouvidos como o do martelo que batia nos enormes pregos de ferro, perfurando os pulsos de Yoshua.
"Não! Não!", ela gritou, desesperada, afastando-se de onde vinha o barulho, sem despertar totalmente. Lutou para abrir os olhos e fugir daquelas lembranças. A luz do exterior atravessou as racha­duras da porta, anunciando o amanhecer. Sentiu-se grata. Agora estava completamente acordada.
A gravidez deixara seu corpo pesado, mas os braços e as pernas continuavam magros. Alguns meses haviam se passado desde a viagem pelo deserto. Os amigos de Yosef cuidavam bem dela, fazendo de tudo para oferecer-lhe conforto e consolá-la pela perda da família e da terra natal.
Mas Miriam procurava consolo nos próprios pensamentos. Sentia-se mais feliz quando estava sozinha. Os odores e o panorama de Alexandria não a atraíam. Ela ficava feliz quando se sentava no jardim, observava os passarinhos e admirava as plantas que floresciam. Muitas vezes, ajudava a cozinhar ou tecer, tarefas que lhe davam prazer. Estava bem-disposta. Tentava não pensar em Jerusalém, nos dias traumáticos que precederam sua partida. Mas de nada adiantava: o peso no coração era enorme.
De vez em quando, ela refletia sobre a tumba vazia de Yoshua. O que poderia significar? Ainda estava confusa... e ferida. Desejara ungir o corpo dele, seguindo a tradição. À primeira luz da manhã do dia seguinte ao sabá, ela correu até à tumba no jardim de Yosef, onde o corpo torturado de Yoshua fora depositado. Mas ele não estava lá. Aterrorizada, ela fugiu.
Confusa, tropeçou e caiu. Quando conseguiu se acalmar, olhou para cima e viu o jardineiro caminhando em sua direção. Desesperada, gritou e implorou que lhe dissesse onde haviam colocado o corpo maltratado de Yoshua. De repente, percebeu que era o próprio Yoshua que se aproximava! Miriam gritou de alegria e quis jogar-se nos braços dele. Sorrindo, Yoshua a ajudou a levantar-se, mas, ao mesmo tempo, balançou a cabeça. "Não me abrace”, disse ele. Então, com suavidade e firmeza, ele a soltou e, com um sinal de adeus, desapareceu tão repentinamente quanto surgira. Miriam ficou ali, parada, olhando para o nada, para o vazio do jardim.
A criança se mexeu em seu útero. Olhando para baixo, ela sorriu. Não demoraria muito. Seu filho seria forte e belo, o cumprimento das profecias: um rei justo e honrado, o Ungido Filho de Davi. Ele seria um filho muito especial, a esperança de Sião. Ela esperaria pacientemente o dia em que as palavras de Deus seriam cumpridas. Sem muita agilidade, Miriam levantou-se da cama e vestiu-se para o dia, firme em sua fé.
O trabalho de parto foi longo e difícil. Várias vezes, ela quase se entregou, mas se esforçou para continuar. O tempo se arrastava. Finalmente, depois que longas horas se passaram e o dia virou noite, e a noite voltou a ser dia, Miriam começou a ter medo e pediu ajuda. A parteira banhou sua fronte com água fria, encora­jou-a, sussurrou promessas nos seus ouvidos. Ela estava exausta. "Preciso chegar ao fim", pensou, angustiada. Mas o sofrimento prosseguia, contração após contração. Muitas vezes ela percebeu os olhares preocupados que as mulheres trocavam. Elas também estavam perdendo o ânimo. Haviam feito tudo o que podiam. Miriam estava sozinha e completamente exausta.
"Meu Deus! Meu Deus! Por que me desamparastes?", as palavras de Yoshua na cruz ecoavam em seus ouvidos. Até que, de repente, ela se viu escapando da dor, distanciando-se dela. Nesse instante, sua impressão foi ter visto Yoshua aproximar-se, sorrindo, e tomar-­lhe a mão. Aos poucos, a força dele começou a fluir para ela, restau­rando a vida em seu corpo, renovando suas energias. "Você precisa voltar", disse ele. "Pela criança"
O sorriso dele a fez recuperar as forças. Uma onda de dor a atingiu quando voltou ao estado de consciência. Mas não sentia mais medo. Yoshua estava com ela - nunca a abandonara. Agora, Miriam conseguia entender. Ele estava tão próximo dela quanto as batidas de seu coração: "Pois o amor é mais forte do que a morte."
Um último momento de entrega à dor e tudo terminou. A parteira levantou a criança, finalmente livre do útero da mãe, deu uma palmada em suas costas e deixou escapar um leve grito de surpresa. "Seu bebê, Miriam. A criança vive", anunciou ela, depois de tantas horas de desespero. "Um lindo bebê." Uma filha?'
Espanto e incredulidade tomaram conta de Miriam. "Não pode ser", pensou. "E as promessas, as profecias? Deve haver algum engano. Não pode ser uma menina. O Filho de Davi, o Cetro de Israel, não pode ser uma menina!" Completamente exaurida e confusa, Miriam caiu em sono profundo.
Horas depois, ela acordou. O quarto estava fresco e limpo, sem nenhum sinal de que ali havia acontecido um parto tão difícil. Alguém levara rosas vermelhas e as colocara em um vaso sobre a mesa, ao lado da cama. Uma mulher estava em pé, em silêncio, ao lado dela, segurando uma pequenina trouxa.
- O que é isso? O que ela quer? - Miriam não conseguia lembrar-­se de onde estava. Confusa, com um sorriso pálido, ela olhou para a estranha.
- Miriam, eu lhe trouxe a criança. Você precisa olhar para ela. É um bebê perfeito e lindo. Não vire o rosto para a sua filha.
A mulher parecia angustiada. Sua preocupação com a recém­-nascida era verdadeira. Uma criança rejeitada pela mãe raramente sobrevivia.
Miriam a olhou fixamente por alguns instantes, em silêncio, lembrando-se do que acontecera. A nuvem de dor e desilusão começou a envolvê-la outra vez. Ela virou o rosto para o outro lado e fixou o olhar na parede.
- Miriam, pelo menos olhe para a sua filha. Está vendo? Está chorando baixinho. Ela precisa de você. Não abandone a sua filha. Pense um pouquinho: ela é inocente. Não fez nada para causar-lhe desgosto. Você tem coragem de rejeitar sua própria filha, seu próprio sangue?
Pouco a pouco, as palavras foram penetrando a consciência de Miriam, despedaçando sua dor. "Meu bebê, a filha do meu amor", refletiu. E lembrou-se: Yoshua quis que ela voltasse. Ele a mandou de volta pelo bem da criança.
Miriam virou-se para a parteira e, hesitante, ergueu os braços lentamente para receber a filha. Olhou para o pequenino rosto avermelhado, os minúsculos dedos. O bebê parou de chorar. Uma enorme ternura inundou o coração de Miriam quando sentiu a criança descansando em seus braços. Cada uma das diminutas unhas estava perfeitamente formada.
"Antes de formá-la no útero de sua mãe, eu a conhecia", cantou o salmista. Deve ser o insondável desejo de Deus de que a criança da promessa seja uma menina. Talvez as profecias sobre o "renovo do tronco de Jessé" tivessem sido mal compreendidas pelos amigos de Yoshua. Quem sabe, não fosse o plano de Deus que um filho dela voltasse para reclamar o trono de Davi em Jerusalém. Isso pode ter sido apenas a manifestação do desejo dos homens, na esperança de serem salvos da opressão de Roma. Ela sabia que, de alguma maneira, sua filha era a materialização do projeto divino.
"Sara”, sussurrou. "Seu nome será Sara... Porque Sara acreditava, mesmo quando parecia não haver mais esperanças, que a promessa de Deus seria cumprida. Eu não compreendo tudo, mas disso eu tenho certeza. Minha filha é a resposta de Deus às nossas preces." Miriam sorriu para o pequeno embrulho aninhado em seus braços. Um versículo do profeta Zacarias veio-lhe à mente: "Não por força nem por violência, mas pelo meu espírito, diz o Senhor”. Confortada, ela adormeceu segurando a filha nos braços.
Yosef sentou-se ao lado da cama de Miriam e ficou observando mãe e filha dormirem. Ele havia ficado surpreso com a notícia. Nunca passara por sua cabeça a idéia de que a criança gerada por Yoshua pudesse ser uma menina. Sua crença no cumprimento literal das profecias sobre o restabelecimento de Sião não abria espaço para dúvidas. Mas a criança era uma menina! Ela não pode­ria liderar os exércitos do Senhor nas batalhas contra o exército romano. Eles teriam que lançar mão de outros planos.
Yosef refletiu sobre o dilema. Os outros planos não incluiriam Miriam e sua filha. Entretanto, ele prometera a Yoshua que as protegeria. Os amigos de Yoshua não aceitariam Miriam, uma vez que a criança não era um menino. Jamais entenderiam. Era melhor nem contar nada a eles, porque também correria o risco de ter que reve­lar onde as duas estavam escondidas. Ela estaria mais segura ali, em Alexandria, vivendo no mais completo anonimato. Melhor deixar que a esqueçam, que preguem sobre o reino do Messias sem ela.
Yosef ouvira falar de uma terra do outro lado do Mar Mediterrâneo, onde árvores e grama cresciam em profusão, onde a neve cobria os campos no inverno e onde a areia escaldante do deserto seria apenas uma lembrança. "Talvez eu deva levar a criança para a Gália", ponderou. A "Videira de Judá" poderia florescer ali, protegida da dor e da opressão. Yosef olhou fixamente para a mãe adormecida e sua filha. "Isso mesmo." Elas viajariam e construiriam um novo lar:'
Diziam que a terra era sempre verde do outro lado do mar e que as flores brotavam o ano inteiro. O Deus de Jacó, o Deus Único, as levaria ao lugar onde pudessem plantar sua videira em um novo jardim. Yosef sorriu pela primeira vez nos últimos dias. A videira de Yoshua e a videira de Miriam - seus descendentes floresceriam na terra fértil além-mar. E de lá, um dia, elas voltariam a Sião para reclamar sua herança, como o salmista prometera. Como seus ancestrais, que voltaram do cativeiro na Babilônia, elas seriam resgatadas do exílio: "Os que semeiam com lágrimas ceifarão com alegria. Vão andando e chorando ao levar a semente; em seu regresso, vêm cantando, carregando os seus feixes." Amém. Shalom.
CAPÍTULO I
A Noiva Perdida
Segundo uma lenda do século IV; preservada em francês anti­go, Maria Madalena levou o Sangraal à costa sul da França. I Histórias que surgiram depois contam que esse Sangraal era o Santo Graal - um cálice. Na verdade, versões posteriores afirmaram tratar-se do cálice usado por Jesus na Última Ceia, na noite de sua prisão.
O Graal foi reverenciado como uma das relíquias mais sagradas da cristandade. Entretanto, de acordo com as lendas, ele foi perdi­do e permanece oculto até os dias atuais. O rei está ferido e aleija­do, diz a lenda, e o reino tornou-se terra infértil porque o Graal desapareceu. A história promete que, quando o recipiente sagrado - que uma vez guardou o sangue de Cristo - for encontrado, o rei será curado e tudo ficará bem. Existe algum cristão que nunca tenha ouvido falar na busca pelo Graal, alguém que não tenha lamentado seu desaparecimento?
Algumas das últimas lendas européias dizem que, quando Jesus agonizava, José de Arimatéia colheu seu sangue em um cálice e o levou de barco para a Europa Ocidental, enquanto os seguidores de Jesus eram perseguidos em Jerusalém (42 d.C.). Um dos relatos afirma que ele transportou duas galhetas contendo o sangue e o suor de Jesus para Glastonbury, no Sudeste da Inglaterra, com um bordão de pilriteiro que brotou e se desenvolveu quando foi plantado em solo inglês - o cajado florido. Outras fontes relatam que ele levou o sagrado Sangraal à costa mediterrânea da França.
Essas variadas lendas geraram numerosas criações poéticas com o passar dos séculos, muitas delas ligando o Graal ao rei Artur e sua Távola Redonda de cavaleiros, que procuraram o cálice sagrado por toda a Europa. O ponto central de todas as poesias é que o cálice é sagrado, que vale a pena procurá-lo, que ele está perdido ou escon­dido e que, se for localizado, fornecerá a cura para a terra infértil. Há um consenso de que o Graal é uma relíquia cristã sagrada, porque foi tocado pelas mãos de Jesus. Na verdade, ele é o mais sagrado e impalpável artefato de toda a civilização ocidental.
Por mais estranho que pareça, porém, a Igreja Católica Romana sempre demonstrou pouco entusiasmo pelo Graal e suas lendas. Foi sugerido por Arthur E. Waite e outros estudiosos do assunto que o mistério do Graal e de seus adeptos oferece uma alternativa à versão ortodoxa do cristianismo e que a competência dos sacerdotes desse "outro" cristianismo deriva diretamente de Jesus, dispensando a sanção da Igreja. Portanto, não é surpresa que essa instituição tenha sempre tentado suprimir o Santo Graal e suas lendas!
A Fé dos Nossos Pais
Qualquer versão do cristianismo que ofereça uma alternativa às doutrinas ortodoxas da Igreja é vista como um anátema. Essa é a definição de heresia. A controvérsia da heresia é que ela não depende da verdade, mas do fato de a doutrina estar ou não de acordo com as afirmações oficiais da fé. Os indivíduos educados na ortodoxia cristã foram cuidadosamente ensinados a aceitar as doutrinas pela fé e sempre as admitiram como verdade única. No entanto, desde os primeiros tempos, houve numerosas versões paralelas do cristianismo, cada uma delas com suas próprias crenças e interpretações das mensagens dos Evangelhos. Com o passar dos séculos, a mensagem de Cristo institucionalizou-se.
Pouco a pouco, foram sendo desenvolvidas doutrinas que nem sempre refletem a fé dos primeiros cristãos judeus que habitavam a Palestina do primeiro século.
A versão oficial do cristianismo, que evoluiu gradualmente e foi sistematizada por concílios da Igreja nos séculos III e IV d.C., baseou-se no consenso dos membros mais antigos presentes nessas assembléias, em geral pressionados pelo imperador romano reinante e por outras facções políticas. Tais concílios votaram pela articulação de doutrinas como a natureza da Trindade, a divindade de Jesus, a virgindade de Maria e a própria natureza da divindade. Eles selecionaram do cânon judaico as escrituras que seriam consideradas canônicas pelos cristãos, bem como os evangelhos e as epístolas da Igreja primitiva que deveriam ser incluídos na Bíblia. Foram esses patriarcas que decidiram quais eram os evangelhos que refletiam os verdadeiros ensinamentos e a biografia de Jesus e quais eram as cartas de Paulo e dos primeiros líderes da Igreja que fariam parte das Escrituras oficiais.
Um dos critérios de seleção para o cânon oficial das Escrituras era que os textos fossem trabalhos autênticos dos apóstolos de Jesus. Assim, os Evangelhos de Mateus e de João e o Livro da Revelação (denominado Apocalipse de João) foram considerados canônicos, embora estudiosos atuais sugiram que nenhum deles tenha sido realmente escrito por um apóstolo de Jesus. Na verdade, um grande número de pesquisadores considera altamente improvável que os autores dos quatro Evangelhos tenham até conhecido o histórico Jesus de Nazaré! Além disso, há evidências de que trechos desses textos foram apagados, adicionados e talvez até censurados nos séculos que se passaram. É muito difícil, à luz desses fatos, considerar o cânon existente nas Escrituras a única interpretação possível da Palavra de Deus.
A versão oficial do cristianismo que foi articulada pelos primeiros concílios da Igreja é a mesma que tem sido transmitida até hoje: a chamada "fé dos nossos pais". Essa é a versão ortodoxa, mas não necessariamente a única versão da fé cristã. Nem obrigatoriamente a verdadeira. A questão que precisa ser examinada é a seguinte: há outra história de Jesus que possa se aproximar mais da verdade do que aquela propagada pela Igreja durante a Idade Média, antes da Reforma Protestante? Existe uma versão alternati­va da doutrina cristã? Poderia ter havido uma Igreja alternativa? Em caso afirmativo, quais teriam sido os dogmas de sua fé? E qual teria sido a sua relação com a mensagem cristã primitiva e com o próprio Jesus?
O Sangraal
Poetas medievais do século XII, época em que a lenda do Graal apareceu na literatura européia, mencionam uma "Família do Graal", presumivelmente guardiões do cálice mais tarde considera­dos indignos desse privilégio. Alguns estudiosos do Graal estabelecem uma conexão entre o termo sangraal e a palavra gradales, que na língua provençal parece ter significado "taça", "travessa" ou "bacia': Mas já se sugeriu que, dividindo-se a palavra sangraal depois do g, o resultado é sang raal, que em francês antigo significa "sangue real”.
Essa segunda derivação do francês sangraal é extremamente instigante e talvez esclarecedora. De repente surge outra interpretação da conhecida lenda: em vez de taça ou cálice, a nova versão afirma que Maria Madalena levou o "sangue real" à França mediterrânea. Outras narrativas creditam a José de Arimatéia o ato de ter transportado o sangue de Jesus àquela região em uma espécie de vaso. Talvez tenha sido Maria Madalena, sob a proteção de José de Arimatéia, que de fato tenha conduzido a linhagem real do rei Davi à costa francesa do Mediterrâneo.
Quem era essa Maria, conhecida dos primeiros cristãos como "a Madalena"? E como ela poderia ter levado o sangue real para a França? O sangue real poderia ter sido levado em um recipiente terreno, um "vaso de barro" (2 Coríntios 4:7)? E se esse vaso fosse uma mulher? Talvez essa Maria fosse, na verdade, a mulher de Jesus e tenha levado um filho dele para a Provença!
As duas genealogias de Jesus apresentadas no Novo Testamento sustentam que o carismático mestre descendia da casa do rei Davi, e as promessas messiânicas feitas a Israel estão todas especifica­mente ligadas ao sangue real de sua princesa judaica do "tronco de Jessé”, o pai do rei Davi. A esposa de Jesus, caso tivesse um filho dele, teria sido, literalmente, a portadora do Sangraal, a linhagem real de Israel.
A procura do Santo Graal é um mistério de muitos séculos. Pistas que ligam Maria Madalena ao Sangraal das antigas lendas são abundantes na arte, na literatura e no folclore da Idade Média, assim como nos acontecimentos históricos subseqüentes e nas próprias Escri­turas. Muitas dessas pistas serão discutidas nos capítulos seguintes, numa tentativa de demonstrar que a Noiva de Jesus foi, talvez por acidente, excluída da história como resultado de tumultos de ordem política na província de Israel logo após a crucificação.
Não tenho provas definitivas de que a "outra Maria" era a mulher de Jesus nem que ela tenha dado à luz um filho de sua linhagem. Mas é possível provar que a crença nessa versão da história cristã foi divulgada na Europa durante a Idade Média e que, mais tarde, acabou obrigatoriamente sepultada pelas impiedosas torturas da Inquisição. Em nossa busca, procuraremos identificar e examinar as evidências da Igreja alternativa - a "Igreja do Santo Graal" - presentes em símbolos na arte e literatura européias e nos próprios Evangelhos do Novo Testamento.
Quem era Maria Madalena?
Nosso primeiro passo será estabelecer a identidade da "outra Maria", encontrada nos quatro Evangelhos. Existem fortes indícios de que Maria Madalena pode ser identificada como Maria de Betânia, a irmã de Marta e Lázaro, mencionada nos Evangelhos de Lucas e João. Essa amável Maria sentava-se aos pés de Jesus, enquanto sua irmã, Marta, servia os convidados (Lucas 10:38-42); depois, ungiu Jesus com bálsamo de nardo (João 11:2, 12:3).
Referências bíblicas a Maria Madalena incluem informações de que ela era uma das mulheres que acompanharam Jesus depois que ele a curou da possessão de sete demônios (Lucas 8:2, Marcos 16:9). Também é apontada como uma das mulheres aos pés da cruz (Marcos 15:40, Mateus 27:56, João 19:25) e uma das que chegaram à tumba às primeiras luzes da manhã da Páscoa (Marcos 16: 1, Mateus 28:1, Lucas 24:10, João 20:1-3). O Evangelho de João afirma que ela foi sozinha ao sepulcro e encontrou Jesus, acreditando, primeira­mente, que ele era o jardineiro. Chegou a abrir os braços para abraçá­-lo quando o reconheceu, chamando-o de rabboni, uma forma afetuosa da palavra "rabino”. Obviamente, essa Maria chamada "a Madalena” era uma amiga e companheira íntima de Jesus.
A Igreja ocidental tem uma antiga e forte tradição que apóia a idéia de que só havia uma amiga querida de Jesus chamada Maria. A bíblica Canção de Salomão, interpretada com freqüência na tradição judaico-cristã como uma alegoria do amor de Deus por seu povo, era muito popular entre os cristãos durante a Idade Média. São Bernardo de Claraval (1090-1153), em seus sermões sobre o Cântico dos Cânticos, comparou a noiva da canção, simbolicamente, com a Igreja e com a alma de cada um dos que crêem. O protótipo que ele selecionou para ilustrar essa "Noiva" de Cristo era Maria, a irmã de Lázaro, que se sentou aos pés de Jesus, absorvendo seus ensinamentos (Lucas 10:39-42) e que, mais tarde, ungiu os pés dele com nardo e secou-os com o próprio cabelo (João 11:2, 12:3). Mas São Bernardo também disse repetidas vezes em seus sermões que era possível que essa Maria de Betânia fosse a mesma Maria Madalena.
Novecentos anos antes de São Bernardo, em Alexandria, um teólogo cristão chamado Orígenes (aproximadamente 185-254 d.C.) identificou Maria Madalena especificamente como a Noiva do Cântico dos Cânticos. Essa associação foi amplamente aceita e louvada na Idade Média.
O Evangelho de João identifica com clareza a mulher que ungiu Jesus com o precioso bálsamo como a irmã de Lázaro (João 11:2), e a tradição francesa chama Madalena de "a irmã de Lázaro': A Igreja Católica Romana nem sequer tem uma data dedicada a essa Maria de Betânia, embora os dias de Marta e de Lázaro sejam celebrados no calendário anglicano. Seria de esperar que a Igreja honrasse essa "irmã favorita': dedicando-lhe uma festividade, como faz com os outros amigos de Jesus. Entretanto, existe um dia em que se homenageia Santa Maria Madalena - 22 de julho -, exatamente uma semana antes do de Santa Marta. É mesmo natural e correto que o dia da mais importante das irmãs-santas seja celebrado em primeiro lugar.
A passagem da Escritura litúrgica oficial da Igreja Católica Romana lida durante séculos na celebração do dia de Maria Madalena foi extraída do Cântico dos Cânticos, que, por associação, identificou Madalena como a noiva descrita no Cântico. No século VI, o Papa Gregório I estabeleceu que Maria Madalena e Maria de Betânia eram a mesma pessoa: ''Acreditamos que aquela a quem Lucas chama de 'pecadora' e aquela a quem João chama de 'Maria' são a mesma mulher de quem, segundo Marcos, 'sete demônios foram expulsos”.
A Prostituta Sagrada
Embora dois Evangelhos, o de Marcos e o de Lucas, sustentem que Maria Madalena foi curada por Jesus da possessão de sete demônios, não está escrito, em lugar nenhum, que ela era uma prostituta. Apesar disso, esse estigma a tem seguido por toda a cristandade. A história original da unção de Jesus em Betânia pela mulher do vaso de alabastro deve ter sido mal interpretada pelo autor do Evangelho de Lucas, que o escreveu quase cinqüenta anos depois do acontecimento. A unção realizada pela mulher em Betânia era similar a uma conhecida prática ritual das sacerdotisas sagradas, ou "prostitutas" do templo, nos cultos às deusas do Império Romano. E até o termo "prostituta" é uma denominação imprópria. Essa palavra, escolhida pelos tradutores modernos, é empregada para hierodulare, ou "mulheres sagradas" do templo da deusa, que desempenhavam um papel expressivo no dia-a-dia do mundo clássico. Sua importância como sacerdotisas da deusa tem origem no período neolítico (7000-3500 a.C.), quando Deus era honrado e amado como feminino nas terras hoje conhecidas como Oriente Médio e Europa.
No mundo antigo, a sexualidade era considerada sagrada, uma dádiva especial da Deusa do Amor, e as sacerdotisas que oficiavam nos templos dessa deusa no Oriente Médio eram sagradas para os cidadãos dos Impérios Romano e Grego. Conhecidas como "mulheres consagradas", eram pessoas de prestígio, as invocadoras do amor, do êxtase e da fertilidade da deusa. Em alguns períodos da história judaica, elas fizeram parte do ritual de adoração do Templo de Jerusalém, embora alguns profetas de Yahweh deplorassem a influência da Grande Deusa, localmente chamada de Asserá. A descoberta, resultante de escavações feitas em Israel, de milhares de estatuetas da Deusa do Amor suméria/cananéia (Inana, Astarté) segurando os seios convenceu os estudiosos de que a adoração da versão hebraica dessa divindade era comum na antiga Israel. As sacerdotisas da Deusa do Amor eram uma visão comum em todas as cidades do Império Romano, inclusive em Jerusalém.
No contexto dos Evangelhos, a mulher que portava o vaso de alabastro contendo o bálsamo pode ter sido uma dessas sacerdoti­sas. Curiosamente, entretanto, Jesus não se mostrou nem um pouco ultrajado com a atitude dela quando o ungiu. Ele até disse aos amigos que se reuniam para um jantar na casa de Simão, em Betânia, que a mulher o ungira para seu enterro (Marcos 14:8, Mateus 26:12). A importância de tal declaração não poderia ter sido mal compreendida pela comunidade cristã primitiva, que preservou essa história em sua tradição oral. A unção para o funeral era a representação de uma parte indispensável do ritual que cultuava o pôr-do-sol e o alvorecer, bem como os Deuses da Fertilidade de toda a região banhada pelo Mar Mediterrâneo.
A unção realizada pela mulher do vaso de alabastro era algo familiar aos cidadãos do império por causa dos rituais de sua Deusa do Amor. Em tempos mais remotos, porém, a unção do rei sagrado era um privilégio exclusivo da noiva real. Por milênios, esse mesmo ato fez parte do rito de casamento das filhas da casa real, que, assim, conferiam majestade ao seu consorte.
Naqueles tempos antigos, até cerca do terceiro milênio a.C., a maioria das sociedades do Oriente Próximo e do Oriente Médio era matrilinear - posição e propriedades eram passadas de mãe para filha. Na verdade, entre as casas reais de grande parte da região, essa prática se manteve inclusive durante o período clássico. Tanto a rainha de Sabá quanto Cleópatra do Egito reinaram como herdeiras dinásticas. Na Palestina, quase contemporaneamente a Jesus, o rei edomita Herodes, o Grande (que reinou de 37 a 2 a.C.), reclamou o trono de Israel baseado em seu casamento com Mariana, uma descendente da casa dos Macabeus, os últimos reis legítimos na Palestina.
Cultos do Rei Sacrificado
Vestígios de práticas matrilineares ancestrais e de adoração da deusa ainda estavam presentes no primeiro século, na Palestina, uma província romana helenizada. Esses antigos mitos e costumes eram visíveis nos cultos das Deusas da Fertilidade da região. A unção feita pela mulher dos Evangelhos é remanescente da poesia romântica ligada aos ritos do Casamento Sagrado, celebrando a união de um deus local e uma deusa. É bem possível que o verdadeiro significado da unção em Betânia tivesse sido exatamente este: o Casamento Sagrado do rei sacrificado. Seu conteúdo mitológico teria sido entendido pela comunidade helenizada de cristãos que ouviram o Evangelho ser pregado nas cidades do Império Romano, onde os cultos das Deusas do Amor não haviam sido completamente abandonados, o que só aconteceu no final do século V d.C.! E no Evangelho de João, a mulher - a Noiva - cujo nome é citado como aquela que fez a unção é Maria de Betânia.
Entretanto, é sempre a Maria chamada "a Madalena" que é representada na arte ocidental carregando o vaso de alabastro que contêm o precioso bálsamo. E é no seu dia que a Igreja Católica Romana cumpre a tradição de ler no Cântico dos Cânticos (3:2-4) a história da Noiva à procura do Noivo/Amado, de quem fora sepa­rada. Nas pinturas medievais e renascentistas, invariavelmente, é Madalena que vemos, de cabelo solto, aos pés da cruz, com Maria, mãe de Jesus, e é também ela que beija os pés de Jesus em pinturas da Descida da Cruz (a retirada do corpo de Jesus da cruz).
Essas obras nos trazem à memória a mitologia pagã de vários Deuses do Sol e da Fertilidade (Osíris, Dumuzi e Adônis), que foram mortos e ressuscitaram. Em cada caso, a viúva (Ísis, Inana e Afrodite) derramou seu luto e desolação sobre o corpo do amado, lamentando sua morte com infinita tristeza. A mitologia egípcia, por exemplo, relata que Ísis, a Noiva-Irmã de Osíris, orou sobre o corpo mutilado dele e concebeu o filho, Hórus, após a morte do pai. Em cada culto, é a Noiva que chora a morte do deus sacrifica­do. Na poesia usada nos cultos de adoração de Ísis, alguns versos são idênticos aos do Cântico dos Cânticos e outros são paráfrases bem próximas. Mais recentemente, estudiosos observaram semelhanças entre as imagens eróticas do Cântico e a poesia romântica da Babilônia, da Suméria e de Canaã na Antiguidade. As evidências dessas similaridades foram descobertas em tábuas cuneiformes e em antigos templos e arquivos no século XX.
A Noiva Perdida da tradição cristã aproxima-se muito desses mitos e histórias remotos. Existe uma tradição muito antiga que identifica Maria de Betânia como Maria Madalena na Igreja ocidental. Na arte medieval, essa mulher também era associada à Noiva-Irmã da mitologia antiga.
O conceito da Noiva-Irmã desses mitos tem extrema importância em nossa história. A Noiva, Deusa da Lua ou da Terra na Antiguidade, era a esposa do Rei-Sol, mas era muito mais do que isso. Era amiga íntima e parceira do Noivo-Deus - a sua imagem refletida em um espelho, sua "outra metade", um alter-ego feminino ou "irmã gêmea". Por esse motivo, o símbolo do espelho é mantido na iconografia da deusa. O Noivo arquetípico simplesmente não poderia ser completo sem ela! O relacionamento entre eles era muito maior do que uma união sexual - havia uma profunda intimidade espiritual e um "parentesco" resumidos na palavra "irmã': O Casamento Sagrado do Noivo com sua Noiva-Irmã não se limitava à paixão física, era uma união de êxtase espiritual e emocional mais profunda também.
Os cristãos da Igreja dos primeiros tempos associaram de imediato Maria Madalena à Noiva-Irmã negra do Cântico dos Cânticos. Em Vênus in Sackcloth (Vênus em hábito de penitência), Marjorie Malvern examina a metamorfose de Maria Madalena: de prostituta a contraparte/amiga de Jesus, por dois milênios na literatura e arte ocidentais. O livro mostra a mudança na arte do século XII, que começou a representar Maria Madalena como a companheira de Jesus, no estilo da mitologia de Vênus/Afrodite e de outras Deusas do Amor, cujos domínios eram a fertilidade e o casamento. A autora sugere que essa transformação resultou do contato com a poesia romântica do mundo árabe no tempo das Cruzadas. Ela observou que essa intimidade foi suprimida no século XIII e que a mãe de Jesus adquiriu uma posição de destaque que não possuía nos próprios Evangelhos. Malvern também chama a atenção para o entusiasmo que havia na Idade Média pelas peças sobre a Paixão de Cristo e para a especial fascinação que as pessoas demonstravam pelas cenas da unção em Betânia e do encontro, no jardim, de Madalena com Jesus ressuscitado.
Acredito que foi a propagação da heresia do Santo Graal o motivo dessa surpreendente transformação de Maria Madalena - que passou de prostituta a Noiva-Irmã - nas representações artísticas do século XII. A Maria retratada em muitas dessas pinturas medievais não era a "pecadora arrependida” nem a "prostituta regenera­da" nem apenas uma amiga de Jesus. Ela era a sua amada.
Muitas pessoas podem sentir-se inclinadas a rejeitar a idéia de que Jesus era casado com Maria Madalena, a irmã de Lázaro. O motivo é muito simples: elas acreditam que, se ele tivesse se casado, os Evangelhos nos teriam contado esse fato. Porém, um exame mais cuidadoso das Escrituras revela várias evidências que corroboram esse matrimônio. Talvez, então, seja melhor começarmos nossa busca com uma análise do Cântico dos Cânticos, cuja interpretação alegórica não esconde as imagens intensamente eróticas do poema de amor. Devemos, também, examinar o motivo condutor da Noiva e do Noivo nas Escrituras hebraicas e nos Evangelhos cristãos. Mais tarde, continuaremos com a busca do Santo Graal. Mas, primeiramente, vamos estudar o rito ancestral do Casamento Sagrado, celebrado nas terras do Oriente Médio e no Cântico da Noiva e do Noivo arquetípicos.
CAPÍTULO II
O Noivo
Nas cidades de Judá, nas ruas de Jerusalém que agora estão desertas, ainda se ouve o grito de alegria, o grito de júbilo, a voz do noivo, a voz da noiva...” (Jeremias 33:10-11). O tema da Noiva e do Noivo permeia os livros dos profetas hebreus como se fosse o motivo condutor de uma ópera. As "vozes do noivo e da noiva ouvidas no reino" são um sinal de bênçãos e alegria para toda a comunidade.
Em Ezequiel 16:3-63, Deus encontra sua Noiva quando ela ainda era uma criança, nua e abandonada. Ele se tornou seu mentor, vestiu-a, alimentou-a e protegeu-a até que se tornasse adulta, quando se casou com ela. Mas ela lhe foi infiel. Esse é um tema subjacente nas Escrituras hebraicas - o de que Deus é o Noivo fiel; e sua Noiva simbólica escolhida, a comunidade da aliança, é infiel.
O livro inteiro de Oséias baseia-se no amor que Deus sente por seu povo infiel, refletido no inabalável e clemente amor de Oséias por sua esposa, a prostituta Gomer. O profeta hebreu Isaías previu um tempo em que Deus desposaria novamente o seu povo, e sua terra seria curada: "...e como a recém-casada faz a felicidade de seu marido, tu farás a felicidade de teu Deus" (Isaías 62:5).
O tema do casal de Noivos que toma parte do Casamento Sagrado aparece com freqüência nas Escrituras hebraicas. Uma passagem muito conhecida e curiosa do Salmo 23, atribuída ao rei Davi, faz lembrar os tempos antigos quando Deus era identificado com o papel da Noiva: "Preparas um banquete para mim na pre­sença dos meus inimigos; unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda." Esse trecho retrata Deus como feminino: nos ritos do Oriente Médio da Antiguidade, a deusa é a Noiva que unge o consorte escolhido, outorgando-lhe sua graça e majestade. Ela é a Grande Deusa das culturas neolíticas que precederam as invasões indo-arianas. As civilizações que adoravam a deusa na antiga Europa (área que incluía a Turquia, os Bálcãs e a Ucrânia) e no novo Ocidente viveram aproximadamente entre 7000 e 3500 a.C., mas a deusa só foi oficialmente banida da região em 500 d.C., quando seu último templo foi fechado. Então, as graciosas paredes com pilares de sua morada terrena foram abandonadas, transformando-se em abrigos para pássaros, e as estátuas de suas elegantes formas foram levadas para longe e abandonadas.
O Hieros Gamos
Nas religiões da Suméria, da Babilônia e de Canaã, ungir com óleo a cabeça do rei era um ritual realizado pela herdeira ou pela sacerdotisa real, que representava a deusa. Em grego, esse ritual era chamado hieros gamos, ou "Casamento Sagrado”. A unção da cabeça tinha um significado erótico - a cabeça era o símbolo do falo ungido pela mulher para a penetração durante a consumação física do casamento. O noivo escolhido era ungido pela sacerdotisa real, a substituta da deusa. Canções de amor, louvor e agradeci­mento acompanhavam o casal. Após a consumação do enlace, um farto banquete era servido a toda a cidade, em meio ao júbilo dos cidadãos. As festividades, algumas vezes, duravam vários dias. A bênção da união real seria refletida na contínua fertilidade das co­lheitas e dos rebanhos e no bem-estar da comunidade.
Por meio dessa união com a sacerdotisa, o rei/consorte recebia status de majestade. Ele se tornava conhecido como "o Ungido" ­em hebraico, "o Messias". Nos ritos antigos do Oriente Próximo, era a Grande Deusa que ungia a cabeça do rei e lhe oferecia um banquete, enchendo o seu cálice com bênçãos e atuando como uma espécie de advogada que o defendia de seus inimigos. A sagrada união da sacerdotisa real com o rei/consorte escolhido era celebra­da como uma fonte de regeneração, vitalidade e harmonia para toda a comunidade.
Essa prática ancestral refletiu-se, posteriormente, nos rituais de fertilidade que aconteciam anualmente em toda a região mesopotâmica, quase sempre para celebrar o ano-novo. Em alguns desses cultos, o consorte eleito pela sacerdotisa do templo local era ritualmente sacrificado para assegurar a fertilidade da terra. "Plantar" o rei sacrificado significava uma garantia de que as co­lheitas dariam bons frutos e as pessoas teriam prosperidade.
As invasões indo-arianas (aproximadamente 355 a.C.) introduziram a idéia da suprema deidade masculina, cuja fúria precisava ser aplacada. Com o passar dos séculos, os cultos baseados em um deus masculino de poderes ilimitados foram substituindo a adoração da magnânima deusa.
Na Palestina, no início da articulação patriarcal do Deus invisível como Senhor e masculino, os profetas assumiram o antigo papel de ungir o rei, função que antes era reservada às sacerdotisas reais da Grande Deusa. No século XI a.C., o povo de Israel persuadiu seu Deus (contra a voz da razão, segundo os relatos contidos nas Escri­turas) a permitir que tivessem um rei, como faziam seus vizinhos pagãos. Yahweh relutou em concordar, pois queria ser o único Deus de Israel. Contudo, acabou cedendo e, finalmente, deu permissão ao profeta Samuel para ungir Saul (cerca de 1220 a.C.) e, mais tarde, Davi (1000-960 a.C.) como reis de Israel. É importante observar que Davi se casou com Micol, filha do rei Saul, segundo a antiga tradição de alcançar a majestade por meio do casamento com uma filha da casa real. Nos séculos que se seguiram, a prerrogativa de ungir o rei foi dada aos sacerdotes do Templo de Jerusalém.
Com o advento da suprema deidade masculina, que substituiu a deusa nas civilizações do Oriente Próximo, o rei assumiu o papel de representante da deidade, assim como as sacerdotisas reais representavam a Grande Deusa no passado. Um poema escrito em torno de 2100 a.C., na Suméria, refere-se a Marduque, a deidade reinante na Babilônia, como "o Noivo do meu bem-estar':2 Os poetas e profetas hebreus adotaram essa imagem de Deus intimamente ligado ao seu povo (EzequieI16; Oséias 2; Isaías 54,62; Jeremias 2, 3). E no Novo Testamento grego, os quatro Evangelhos estão repletos de menções ao tema do Noivo referindo-se a Jesus.
No Novo Testamento existem muitas evidências de que Jesus compreendeu a íntima relação matrimonial entre Deus e a comunidade da aliança e de que ele próprio adotou, conscientemente, o papel de Noivo/Rei de seu povo. Os Evangelhos deixam claro que Jesus não veio para acabar com o domínio de Roma. As parábolas ali contidas incluem repetidas referências ao tema do casamento, e Jesus é, com freqüência, representado como o Noivo.
Jesus, o Noivo
O povo da Palestina esperava há bastante tempo pela chegada de um Messias, o Ungido por Deus, para salvá-lo da tirania romana e do ilegítimo e despótico jugo dos reis herodianos. A esperança de muitos judeus era de que um Messias davídico viesse com o poder de vencer os inimigos de Israel, segundo as palavras de seus profetas. A comunidade religiosa purista de Qumran e os radicais zelotes viviam na expectativa diária de que essas profecias se cumprissem.
Após a morte de Jesus, as interpretações das palavras dos profetas mudaram: em vez de um reino terreno, que era a esperança de todos, deveriam esperar por um reino celestial, que viria mais tarde. As imagens de "servo sofredor" de Isaías - a metáfora do obediente Cordeiro Sacrificado, que voltaria em glória para salvar os oprimidos - tornaram-se um mito predominante do movimento cristão a partir da última metade do primeiro século. Mas o pró­prio Jesus parece ter entendido o seu papel como representante de Yahweh - como o celestial Noivo de Israel. Como Rei Ungido e filho fiel, ele é sacrificado pelo bem da comunidade.
O evangelista Marcos montou, cuidadosamente, o cenário para essa revelação de Jesus como Noivo/Rei de Israel. Ele descreveu a chegada de Jesus e seus apóstolos às cercanias de Jerusalém antes da Páscoa judaica. À medida que se aproximavam, Jesus mandou que dois de seus discípulos fossem na frente até Betânia e procurassem um "jumento em que homem nenhum tivesse montado" (Marcos 11:2). Eles atiraram seus mantos sobre o jumento, e Jesus montou no animal, seguindo para Jerusalém. O povo estendeu mantos e ramos de árvores pelo caminho e anunciou que "o reinado de Davi estava para começar" (Marcos 11:10).
Esse acontecimento fez cumprir a profecia messiânica descrita no livro do profeta hebreu Zacarias. Jesus não participou dessa cena por mero acidente - sua chegada, montado no jumento, foi uma atitude consciente e simbólica por meio da qual ele procla­mou, deliberada e irrevogavelmente, o seu papel messiânico:
Alegra-te muito, ó filha de Sião!
Exulta, ó filha de Jerusalém!
Eis que vem a ti o teu rei;
ele é justo e traz a salvação;
ele é humilde e vem montado sobre um jumento,
o potro de uma jumenta (Zacarias 9:9 - NVI).
No tempo dos livros Gênesis e Crônicas era costume um líder carismático que viesse em paz chegar montado em um jumento, ao passo que um rei guerreiro montava um cavalo de guerra e porta­va armas.3 O rei Davi fez com que seu filho Salomão montasse seu próprio jumento real quando foi ungido rei de Israel (1 Reis 1:33­-38). O Jesus de Marcos anuncia sua missão como Rei da Paz, entrando em Jerusalém montado no potro de uma jumenta. Mas, ao mesmo tempo, ele proclamava ser o herdeiro de Davi, uma ati­tude de enorme significado político. Anunciava o cumprimento da profecia de Zacarias: "Seu rei decretará a paz entre as nações; seu império estender-se-á de um mar a outro" (Zacarias 9:10).
A Mulher do Vaso de Alabastro
Betânia era uma pequena vila localizada no contraforte sudeste do Monte das Oliveiras. Em Zacarias 14, vemos a expectativa apocalíptica de que, quando o Senhor fosse salvar Israel de seus inimigos, ele iria ao Monte das Oliveiras: "Naquele dia, os pés Dele se apoiarão no Monte das Oliveiras, a leste de Jerusalém" (Zacarias 14:4). Essa profecia elevou o monte à condição de local de expecta­tivas messiânicas. Era a Betânia que Jesus retomava todas as noites após visitar Jerusalém durante a semana da Páscoa judaica. E ali ele foi ungido pela mulher do vaso de alabastro.
Essa história da unção de Jesus pela mulher em Betânia é um dos eventos mais importantes relatados nos Evangelhos do Novo Testa­mento. Deve ser extremamente significativa, uma vez que é mencionada nos quatro Evangelhos canônicos. Ela representa, sem dúvida, a expressão mais íntima da associação com o Eros nos relatos sobre a vida de Jesus e, só por esse motivo, mereceria uma investigação mais cuidadosa. Contudo, esse fato raramente recebeu a devida consideração. Qual era o significado daquela atitude? Não seria provável que a mulher que ungiu Jesus no banquete em Betânia fosse a mesma mulher que o encontrou no jardim, perto da tumba, ao raiar da manhã da Páscoa?
Certa noite, de acordo com Marcos 14:3, "quando Jesus se achava em Betânia, sentado à mesa... entrou uma mulher trazendo um vaso de alabastro”. Essa atitude pode ser compreendida como um reconhecimento profético de Jesus como o Messias, o Ungido, ação interpretada como politicamente perigosa porque proclamava a realeza dele.
Na antiga Israel, reis, sacerdotes e profetas eram ungidos com óleo para receberem a afirmação de seu poder como os "escolhi­dos" para representar Yahweh. O óleo de oliva sagrado era cuidadosamente preparado pelos sacerdotes no Templo e, seguindo uma receita especial, era misturado a outras essências: canela, mirra, cálamo e acácia. Seu uso pelos leigos era proibido, sob pena de excomunhão. Mas a mulher de Betânia não usou o óleo sagrado dos sacerdotes do Templo. Ela abriu "um vaso de alabastro cheio de um perfume muito caro, feito de puro nardo. Então quebrou o vaso e derramou o perfume sobre a cabeça dele" (Marcos 14:3-4).
Os estudiosos de hoje acreditam que "puro nardo" possa ser uma corruptela da palavra grega para espicanardo. O aromático bálsamo era um perfume raro e de grande valor, extraído de uma planta típica da Índia. Na Palestina helenizada, as mulheres ricas muitas vezes usavam uma pequena quantidade desse bálsamo num frasco, ou alabastron, preso a uma corrente no pescoço. Em geral, era um item que fazia parte do dote. Era costume quebrar o frasco, ungir com seu conteúdo o corpo do amado morto e deixar os fragmentos do recipiente na tumba.
Além dos relatos dos Evangelhos que descrevem a unção de Jesus com esse caro perfume, há um outra passagem nas Escrituras em que o espicanardo é mencionado: "No banquete para o rei, meu nardo exala o seu perfume" (Cântico dos Cânticos 1:12). A Noiva é aquela cujo espicanardo se espalha em volta do Noivo/Rei em seu banquete no Cântico dos Cânticos, a antiga canção do Casa­mento Sagrado.
O Cântico dos Cânticos
Alguns estudiosos modernos acreditam que o Cântico dos Cânticos foi composto como parte dos ritos de fertilidade sumérios de Dumuzi e Inana - um mito comum no antigo Oriente Próximo por milhares de anos. A poesia romântica inscrita em tábuas cuneiformes recentemente decifradas descreve Dumuzi como um "pastor" e "Filho Fiel" - epítetos que foram, mais tarde, aplicados a Jesus! A amada de Dumuzi é chamada de "irmã" e "noiva". O rei era considerado um "filho escolhido" pelo fato de que a deidade o havia "formado no útero de sua mãe”. Ele foi ungido para esse papel, que incluía sua morte e seu enterro como rituais: era dever do rei ser reunido à deusa, Mãe-Terra (Inana). Após o casamento, Dumuzi era ritualmente torturado, morto e enterrado, garantindo a renovação das colheitas e dos rebanhos. O rei não podia tornar-­se velho ou fraco, não lhe era permitido perder sua força e vitalidade, pois a vida do povo era um reflexo de sua virilidade. Se o seu poder e a sua força decaíssem, o mesmo aconteceria à força e ao poder do povo.
Em alguns ritos, o rei torturado era sepultado e, então, "ressusci­tado" após um breve período, normalmente três dias. Os versos da liturgia incluem os lamentos de Inana pela morte de Dumuzi, a busca da deusa pelo rei desaparecido e uma expressão de júbilo por seu retorno. Essa porção do mito do Noivo, predominante no culto pagão, é reapresentada no Evangelho de João, na passagem em que Maria Madalena encontra Jesus ressuscitado perto da tumba, na Páscoa. E pode ser visualizado nas Pietás e nas pinturas sobre a Descida da Cruz na arte cristã.
Durante o período da influência grega (330-30 a.C.), versos idênticos e paralelos àqueles do Cântico dos Cânticos foram encontrados em uma poesia litúrgica do culto da deusa egípcia Ísis, a Noiva-Irmã do mutilado Deus-Sol Osíris. Esculturas antigas de Ísis lamentando-se sobre o corpo de Osíris serviram de modelo para Pietás medievais. Existem muitas teorias sobre a origem da poesia romântica do Casamento Sagrado, mas é sabido que o rito do Deus da Fertilidade, que morre e ressuscita, era comum na Palestina dos tempos de Jesus.
O Pastor/Rei e sua Noiva
Talvez seja impossível determinar a fonte exata do livro bíblico Cântico dos Cânticos, mas seu significado é bastante claro: é a canção de casamento do Pastor/Rei e sua Noiva. Os ritos do hieros gamos eram tão conhecidos no mundo helenizado que a unção da cabeça de Jesus não poderia ter sido mal compreendida por aqueles que a testemunharam. O autor do Evangelho de Marcos é mestre em atribuir importância mítica a certos eventos. Aplacar a tempestade, purificar o Templo e outros feitos relatados em sua Escritura proclamam a identidade mítica de Jesus por meio da ação. E a história de sua unção pela mulher em Betânia não é exceção.
A reação de Jesus à unção deixa claro que ele não somente a entendeu e admitiu como também aceitou seu papel mítico como o Noivo/Rei sacrificado. Por toda a Bíblia grega há referências ao messiânico "banquete de casamento" e, em várias partes dos Evangelhos, são feitas menções a Jesus como "noivo': Numerosas alusões ao Noivo e à Câmara Nupcial também aparecem nos Evangelhos gnósticos descobertos em Nag Hammadi, no Egito, na década de 1940, fato que corrobora a prevalência desse tema entre algumas seitas dos cristãos primitivos.
Em Marcos 2:19-20, Jesus afirma que seus discípulos não estão jejuando: "Quando o noivo for levado para longe deles, nesse dia eles jejuarão." Essa passagem é repetida em Marcos 14 quando os dis­cípulos reclamam do custo do perfume desperdiçado. Jesus defende a mulher, dizendo: "Os pobres tendes convosco sempre, quando quiserdes podeis fazer-lhes o bem; mas a mim não me tendes sempre." E, então, ele anuncia que a mulher ungiu seu corpo para o fu­neral, confirmando o anúncio que ela fizera do Casamento Sagrado, que incluía a tortura e a morte do Noivo/Rei Ungido.
As freqüentes alusões a Jesus como o Noivo do mito da fertilidade poderiam ser criação de autores helenizados dos Evangelhos. Mas é muito mais provável que tenham se originado com o próprio Jesus, segundo a tradição dos profetas hebreus, que proclamaram Yahweh o Noivo celestial da comunidade e o rei de Israel seu "filho fiel" ou "servidor", o Ungido Messias. Os temas do Noivo e do "filho fiel" (termos presentes também nas mitologias suméria e cananéia) são repetidos no Apocalipse de João, o último livro do Novo Testamento grego, que foi escrito por um autor judeu no final do primeiro século.
Judas e os Zelotes
Talvez a mais forte evidência de que a unção foi imediatamente compreendida pelos que participavam do banquete em Betânia tenha sido a atitude tomada por Judas Iscariotes. Alguns estudiosos modernos o descrevem como um zelote, político de extrema direita que esperava derrubar o domínio romano. É muito provável que ele tenha sido membro de um grupo sionista militante denominado Sicarii, os "Filhos do Punhal': Judas deve ter ficado completamente desiludido quando percebeu que o herdeiro de Davi não pretendia derrubar o domínio romano na Judéia - Jesus escolhera o papel de Noivo, e o Reino de Deus estava sendo anunciado como um banquete de casamento universal, aberto a todos. Por esse motivo, ele foi ao chefe dos sacerdotes para trair Jesus (Marcos 14:10).
É bem possível que a unção o tenha convencido de que Jesus não era o Messias de suas expectativas. O Dia de Yahweh havia chegado. O Escolhido fora ungido no Monte das Oliveiras, não com o óleo sagrado do ritual hebreu, e sim com o bálsamo perfumado de uma mulher. E ele não apenas aceitara essa unção como defendera a ati­tude da mulher como um anúncio profético de sua morte e de seu enterro, exatamente como no rito primitivo do hieros gamos. Se Judas fosse mesmo um zelote fundamentalista - zeloso do cumpri­mento da Lei -, teria ficado estarrecido ao ver Jesus assumir, pela própria vontade, o papel do sacrificado Deus da Fertilidade e do Sol dos pagãos.
Naturalmente, a versão que o Evangelho apresenta dessa história foi escrita para convertidos cristãos, que teriam total compreensão do conteúdo mitológico do tema do deus sacrificado. Esses ritos pagãos eram praticados em templos nas cidades do Império Romano até serem banidos pela vitoriosa hierarquia cristã, no final do século IV d.C. Mas a inclusão da história da unção nos quatro Evangelhos indica que as testemunhas oculares que primeiro relataram o fato devem ter visto nele algo que consideraram de extrema importância.
Em Memória Dela
Em todo o Evangelho de Marcos, sempre que alguém deseja proclamar Jesus o Filho de Deus ou o Messias, ele sempre adverte que sua identidade não deve ser revelada a ninguém. Contudo, inesperadamente, em Marcos 14:9, Jesus diz aos seus discípulos que a história da mulher do vaso de alabastro deveria ser contada e re­contada "em memória dela': Alguém, talvez o próprio Jesus, pode ter considerado esse evento tão significativo que deveria ser mantido vivo na comunidade. Por quê?
Denis de Rougemont sugeriu que, quando um evento importante é muito perigoso para ser discutido, ele é estabelecido como mito e contado como lenda. Essa opinião, expressa em História de amor no Ocidente13 - publicado primeiramente em francês, em 1940 -, poderia ser aplicada ao mito em torno da mulher do vaso de alabastro. Seria a história da unção/rito de casamento de Jesus narrada como um mito por causa do perigo que representava para a mulher que era sua esposa? Seria mais seguro relatar a lenda sabendo que as pessoas que a ouvissem entenderiam a relação íntima dessa mulher com o Noivo/Rei?
Estamos falando de uma versão oral da história, que, presu­mivelmente, circulou por todo o Império Romano por quase quarenta anos até que o autor do Evangelho de Marcos a escrevesse.
Na verdade, esse acontecimento foi tão importante que sobreviveu em várias versões diferentes na tradição oral. Mesmo assim, embora deva ter sido considerado um escândalo que uma mulher ­qualquer uma - tocasse um homem judeu em público, não há nenhum sinal de que os amigos de Jesus tenham ficado horrorizados com a atitude dela. A maior preocupação de todos parece ter sido o alto preço do perfume desperdiçado, que "podia ser vendido por mais de trezentos denários" (Marcos 14:5). Como se fosse uma perda pessoal de cada um deles!
E quem era a mulher do vaso de alabastro que ungiu Jesus? Por muitos séculos, ela tem sido retratada pela Igreja como "pecadora" e "prostituta". Nunca como Noiva. Entretanto, Orígenes (185-254 d.C.), patriarca da Igreja, reconheceu Madalena como a Noiva-­Irmã dos Cânticos, assim como o fizeram as comunidades dos primeiros cristãos que viviam no Império Romano do primeiro século. E o autor do Evangelho de João chama essa mulher de "Maria, a irmã de Lázaro”.
Na Igreja Católica Romana, há uma forte tradição de que o após­tolo João era o protetor de Maria, a mãe de Jesus, e que após a crucificação (provavelmente por medida de segurança) ele a levou para viver em Éfeso. O Evangelho de João, se não é de sua própria autoria, foi, sem dúvida, escrito por seus discípulos (aproximada­mente 90-95 d.C.) em Éfeso. Há evidências nesse Evangelho de um importante material histórico sobre Jesus que não está incluído nos outros três. Certamente, João e a mãe de Jesus foram a fonte desse material. E, embora não tenha sido relatado nos Evangelhos anteriores, ambos, sem dúvida, teriam sabido o nome da mulher que ungiu Jesus. Ela era Maria de Betânia, sua Noiva Perdida.
CAPITULO III
O Sangue Real e a Videira
O quarto Evangelho afirma com muita clareza que a mulher que ungiu Jesus em Betânia era Maria, a irmã de Lázaro. O nome de Maria Madalena não aparece vinculado à cena da unção, mas é ela que, nos Escrituras do Novo Testamento, acom­panha Jesus ao calvário, colocando-se ao lado da cruz, e também é ela que, na manhã de Páscoa, vai terminar a unção para o enterro, o que começara a fazer vários dias antes. Nós já examinamos as tradições da Igreja ocidental segundo as quais Maria de Betânia e Maria Madalena são a mesma pessoa. Mas por que Maria de Betânia foi chamada de "a Madalena”? Por que foi forçada a fugir de Jerusalém? E o que aconteceu à linhagem sagrada que ela carregava consigo?
O Casamento Secreto
Passei a suspeitar de que Jesus fizera um casamento dinástico secreto com Maria de Betânia e que ela era descendente da tribo de Benjamim, cuja herança ancestral era a terra ao redor de Jerusalém, a Cidade Santa de Davi.
Saul, o primeiro rei ungido de Israel, pertencia à tribo de Benjamim, e sua filha Micol foi esposa do rei Davi. Ao longo da história de Israel, as tribos de Judá e de Benjamim foram as aliadas mais próximas e mais leais. Seus destinos se entrelaçaram. O casamento dinástico de uma descendente de Benjamim, herdeira das terras em torno da Cidade Santa, com o messiânico filho de Davi teria exercido grande influência sobre a facção fundamentalista zelote da nação judaica ocupada - um abençoado signo de esperança para o povo durante o período mais sombrio de Israel.
Em seu romance King Jesus (Rei Jesus), de 1946, o mitógrafo do século XX Robert Graves sugere que a descendência e o casamento de Jesus foram mantidos em segredo, e deles s6 tinha conhecimen­to um seleto círculo de líderes leais.. Para proteger a descendência real, o matrimônio teria sido ocultado dos romanos e dos tetrarcas de Herodes; e a segurança da esposa e da família de Cristo, depois de sua crucificação, confiada aos poucos que conheciam suas iden­tidades. Todas as referências ao casamento de Jesus, supõe Graves, foram deliberadamente obscurecidas, editadas ou destruídas. Mas a esposa grávida do filho ungido de Davi teria sido a portadora da esperança de Israel - o Sangraal, a descendência real.
Magdal-eder, a Torre do Rebanho
No capítulo 4 do profeta hebreu Miquéias há uma bela profecia sobre a restauração de Jerusalém no momento em que todas as nações transformarem suas espadas em relhas de arado e se recon­ciliarem com Deus. Dizem os versículos 8, 9 e 10:
E a ti, ó [Magdal-eder] torre do rebanho,
Outeiro da filha de Sião,
A ti virá, sim, a ti virá o primeiro domínio,
O reino da filha de Jerusalém.
E agora, por que fazes tão grande pranto?
Não há em ti rei?
Pereceu o teu conselheiro,
De modo que se apoderaram de ti dores, como da que está de parto,
Sofre dores e trabalha, ó filha de Sião,
Como a que está de parto;
Porque agora sairás da cidade
E morarás no campo.
É provável que as referências originais a Maria Madalena na tradição oral, as "perícopes" do Novo Testamento, tenham sido mal interpretadas antes de serem transformadas em texto. Suspeito de que o epíteto "Madalena" era uma alusão ao "Magdal-eder" de Miquéias, a promessa de restauração de Sião que se seguiria ao seu exílio. Talvez as primeiras referências verbais ligando o epíteto "Magdala" ao nome de Maria de Betânia não tivessem nenhuma relação com uma obscura cidade da Galiléia, como já se sugeriu, mas fossem alusões intencionais a essas linhas de Miquéias, à "torre" ou "outeiro" da filha de Sião obrigada ao exílio político.
O topônimo Magdal-eder significa literalmente "torre do reba­nho”, no sentido de um lugar elevado usado pelo pastor como posto de observação, de onde ele toma conta de suas ovelhas. Em hebraico, o epíteto Magdala significa literalmente "torre" ou "eleva­do, grande, magnificente". Essa denotação ganharia especial relevância se a Maria assim denominada fosse de fato a esposa do Messias. Seria o equivalente a chamá-la, em hebraico, de "Maria, a Grande" e, ao mesmo tempo, uma referência à profética restauração da soberania da "filha de Jerusalém" (Miquéias 4:8).
Numa antiga lenda francesa, a exilada "Magdal-eder”, a Maria refugiada que busca asilo na costa meridional do país, é Maria de Betânia, a Madalena. A lenda francesa primitiva conta que Maria "Madalena", Marta e Lázaro de Betânia chegaram em um barco ao litoral de Provença. Outras histórias creditam a José de Arimatéia o papel de guardião do Sangraal, que, eu sugeri, talvez fosse a descendência real de Israel, e não um cálice propriamente dito. O receptáculo que continha a Rei Ungido Jesus.
A imagem de Jesus que surge de nossa versão é a de um líder carismático que encarna os papéis de profeta, cura e Rei/Messias ­condenado e executado pelo Exército Romano de Ocupação -, cuja esposa e descendência foram retiradas em segredo de Israel por amigos leais e transferidas para a Europa Ocidental à espera da cul­minação da profecia na plenitude dos tempos. Os amigos de Jesus que tão ardentemente acreditavam ser ele o Messias, o Ungido de Deus, teriam considerado a preservação de sua família um dever sagrado. O receptáculo, o cálice que materializava a promessa do Milênio, o Sangraal da lenda medieval era, eu concluí, a própria Maria Madalena. . .
A Videira do Senhor
Muitas passagens bíblicas usam a palavra "videira" como uma metáfora para o povo escolhido por Deus: "Trouxeste do Egito uma videira" (Salmos 80:9). "Pois a videira do Senhor dos exércitos é a casa de Israel, e os homens de Judá são a planta de sua predileção" (Isaías 5:7). Várias passagens referem-se à videira no feminino, comparando-a a uma mulher: ''A tua mulher será como a videira frutífera" (Salmos 128); "Tua mãe era como uma videira plantada junto às águas; ela frutificou e encheu-se de ramos... Mas foi arran­cada com furor... e agora está plantada no deserto... não há mais nela ramo forte, não há mais o Cetro real" (Ezequiel 19:10). Essa videira real transplantada é compreendida pelos estudiosos da Bíblia como uma referência à linhagem real davídica de Judá, a li­nhagem dos príncipes.
A Noiva dos Cânticos zela com cuidado pelas videiras. Em Isaías 5, a videira rebelde produz uvas ruins. O salmo 80 é uma oração para sua restauração: "O Deus dos exércitos, volta-te, nós te rogamos; visita esta videira, a videira que a tua destra plantou." No Evangelho de Marcos, Jesus conta a parábola dos podadores de videiras, os que zelavam pelas vinhas (Israel), que agridem os serviçais do mestre quando eles vão inspecionar as condições dos vinhedos e, depois, matam o filho desse mestre. Ninguém que conhecesse Jesus de Nazaré e que tivesse "ouvidos para ouvir" duvidaria da identidade daquele "filho fiel': Ele era o herdeiro legítimo da "Videira de Judá".
Transplantar a "Videira" davídica não teria sido surpresa para os zelotes, amigos fundamentalistas de Jesus. Eles sabiam que isso fora profetizado (Ezequiel 17). Já acontecera antes, quando o povo de Israel foi escravizado e levado à Babilônia. Mas poderia acontecer outra vez. Diante do perigo que sofria a Videira de Judá, a linhagem real, é provável que os amigos de Jesus tomassem medidas drásticas e talvez desesperadas para proteger sua família. Teria sido sua mais importante prioridade.
A Fuga para o Egito
Em decorrência das condições da ocupação romana de Israel, a Sagrada Família teria sido mantida em segredo e protegida a todo custo pela facção monárquica da Palestina. Após a crucificação de Jesus, sabe-se que Maria Madalena não permaneceu em Jerusalém. Não há menção a Maria, a Marta e a Lázaro no Livro Atos dos Apóstolos nem nas epístolas de Paulo. De qualquer maneira, Maria jamais seria identificada como a viúva de Jesus. O perigo teria sido grande demais. É provável que aqueles amigos especiais de Jesus não mais fizessem parte da comunidade de Jerusalém quando as cartas de Paulo foram escritas (51-63 d.C.), mas a partida deles não foi explicada. Se fizessem parte da comunidade após a ascensão de Jesus, seus nomes teriam sido mencionados nos últimos trabalhos do Novo Testamento que foram declarados canônicos.
Em vez disso, referências a Maria Madalena após a ascensão ocorrem apenas nos Evangelhos gnósticos (manuscritos dos Novos Testamentos coptas que foram encontrados, em 1945, em Nag Hammadi e em outros lugares do Egito), textos que confirmam que ela era uma companheira íntima de Jesus. O Evangelho de Filipe diz: "Três mulheres seguiam Jesus em todos os momentos: sua mãe Maria, a irmã dela e Madalena, a que é chamada de sua companheira”. Segundo esse Evangelho, Maria Madalena teria desperta­do o ciúme dos apóstolos porque era a companheira mais próxima, ou "consorte" do Senhor, a quem ele sempre beijava na boca.
Os quatro Evangelhos canônicos deixam claro que Maria Madalena gozava de especial importância na comunidade dos fiéis por ter sido a primeira pessoa a ver Jesus e a falar com ele no domingo de Páscoa - ela correu à sua tumba às primeiras horas da manhã para realizar os ritos de embalsamamento do corpo. Há sete listas nos quatro Evangelhos que citam as mulheres que acompanhavam Jesus. Em seis delas, o nome de Maria Madalena é o primeiro - antes mesmo do de Maria, a mãe. Os escritores dos Evangelhos, a começar por Marcos, estão, provavelmente, indicando a posição de Madalena na comunidade cristã: o papel de primeira-dama.
Os manuscritos coptas foram descobertos em Nag Hammadi em aproximadamente 400 d.C., um período em que a Igreja cristã de orientação ortodoxa (declarada a Igreja oficial do Império Romano pelo imperador Teodósio) começou a procurar e destruir os documentos das seitas que considerava heréticas. Esses textos foram conservados em vasos similares àqueles que continham os Pergaminhos do Mar Morto, nas cavernas perto de Qumran, no deserto da Judéia. Encontrados nas décadas de 1940 e 1950, eles abriram uma nova área de pesquisas sobre os primeiros séculos da cristandade. A importância atribuída a Maria Madalena nos quatro Evangelhos canônicos é intensificada em vários desses documentos apócrifos. Os manuscritos coptas - muitos dos quais pergaminhos do segundo e terceiro séculos - são bem mais antigos do que as cópias dos Evangelhos canônicos. E, milagrosamente, sobreviveram ao expurgo da Igreja primitiva, assim como os Pergaminhos do Mar Morto resistiram à destruição imposta pelas legiões romanas durante a revolta judaica ocorrida entre 66 e 74 d.C., quando a nação de Israel foi virtualmente exterminada e a comunidade cristã de Jerusalém, aniquilada.
Jesus e a Facção dos Zelotes
Vou falar rapidamente sobre a natureza das acusações contra Jesus que fizeram com que Pilatos, o procurador romano da província, ordenasse sua crucificação - uma sentença que colocou sua mulher, Maria, em grande perigo. Se Jesus tivesse sido acusado apenas de blasfêmia por ter se proclamado filho de Deus, como sugere a Bíblia, sua mulher não correria nenhum perigo. Contudo, se ele fosse condenado por suas filiações políticas, como pretendo demonstrar, ela teria sido, sem dúvida, forçada a fugir para salvar a própria vida.
Existem fortes evidências que comprovam a teoria de que Jesus era simpático aos ativistas de direita de Israel. Vários de seus após­tolos, por exemplo, eram conhecidos militantes extremistas, e o mais citado entre eles é Judas Iscariotes. O nome Iscariotes é interpretado por muitos como um indicativo de que ele pertencia, como disse anteriormente, à irmandade radical de assassinos políticos, os Sicarii, ou "Filhos do Punhal”. (Esse epíteto vem da palavra latina sica, uma pequena adaga que os homens escondiam sob seus mantos. Sicarius significa "aquele que mata com uma sica”).
Simão, o Cananeu (Qu'anan), é outro seguidor de Jesus men­cionado em Mateus 10:4. A nota de rodapé da Bíblia que consultei afirma que "cananeu" é a raiz da palavra "zelote”. Lembrando que os relatos do Evangelho foram difundidos oralmente durante muitas décadas antes de serem escritos em pergaminhos, é possível que o casamento em Caná tenha sido, na verdade, o "casamento dos zelotes”. Talvez essa união tenha significado um evento de grande importância para os judeus - ou seja, o casamento de Jesus e Maria Madalena. A mudança da água para o vinho poderia, então, ser compreendida como a atribuição simbólica de uma "nova vida" ­de esperança e alegria messiânicas renovadas. Histórias sobre a vida e os ensinamentos de Jesus circularam por mais de trinta anos antes que a primeira versão - o Evangelho de Marcos - fosse escrita, aproximadamente em 70 d.C. O estudo lingüístico da etimologia popular confirma que detalhes de uma história são modificados involuntariamente à medida que são transmitidos oralmente. Algumas vezes, expressões, coloquialismos e nomes próprios são interpretados ou escritos de maneira errada. Se Simão, o Cananeu, significa Simão, o Zelote (fato sobre o qual parece não haver nenhuma dúvida), então Caná também poderia ser uma referência à festa zelote.
Muitos estudiosos do Novo Testamento acreditam que a acusação feita a Jesus não era de blasfêmia, mas de insurreição. Os argumen­tos para se compreender Jesus como uma figura política - o Messias davídico judeu que assumiu uma atitude de ameaça à estabilidade da província romana da Palestina - são claramente delineados por S. G. F. Brandon em Jesus and the Zealotes (Jesus e os zelotes). O movi­mento popular espontâneo que foi se expandindo, estimulado pelas atitudes de Jesus e seu ministério, representou um desafio direto à autoridade política de Roma. Jesus foi acusado de incitar o povo ao terror, e o castigo romano tradicional reservado para as insurreições praticadas pelos zelotes era a crucificação. Na verdade, no período de 6 d.C. a 70 d.C, quando se deu a queda de Jerusalém, centenas de patriotas judeus foram crucificados.
As multidões seguiam Jesus de cidade em cidade durante o seu ministério, e, uma ou duas vezes, os Evangelhos relatam que o povo desejava fazer dele o seu rei. Mas a ação que levou à sua prisão imediata pelas autoridades em Jerusalém foi a derrubada das mesas dos mercadores no Templo de Jerusalém durante o festival da Páscoa judaica. Todos os anos, judeus de todas as partes do Império dirigiam-se a essa cidade para fazer ofertas no Templo. A atitude que Jesus tomou, espalhando moedas do Império por todo o chão do Templo, foi um ataque radical ao sistema religioso formado pelos sacerdotes e aos saduceus, a elite que colaborava com as autoridades romanas para manter a tranqüilidade e a ordem na província.
A comunidade do deserto, que escreveu vários dos Pergaminhos do Mar Morto, há muito tempo caracterizava o culto do Templo e seus sacerdotes como perversos e mentirosos em relação aos ensinamentos da Tora e dos profetas. Essas pessoas diziam que o próprio Templo era impuro e que a adoração que acontecia ali estava maculada pela associação com os pagãos. Ligações entre o primeiro movimento cristão - a comunidade Qumran - e Massada - a última fortaleza dos zelotes - contra as legiões romanas estão bem documentadas. Essa comunidade, que era radicalmente anti-romana, antiestablishment, apocalíptica e messiânica, esperava a restituição da linhagem davídica ao trono de Israel.
No Pergaminho de Guerra, encontrado em um dos vasos, esse Messias davídico é chamado de "o Cetro”. Os sectários de Qumran denunciavam a elite dos saduceus, que controlava a adoração corrupta no Templo e explorava os pobres com exigências de sacrifícios e dízimos. Eles acreditavam ser os únicos remanescentes puros de Israel. Seus membros praticavam ritos semelhantes ao batismo das primeiras comunidades cristãs e marcavam os iniciados na testa com o sinal que, em Ezequiel 9, é mencionado como o que distinguia os verdadeiramente iluminados - aqueles que se angustiavam com as abominações praticadas em Jerusalém. (O uso pos­terior da letra X pelos cristãos foi atribuído ao fato de ser essa a inicial da palavra grega referente a Christos, mas a prática de marcar os iniciados como "eleitos" era a mesma.)
A comunidade de Qumran mantinha-se afastada daqueles que colaboravam com os romanos. Muitas de suas crenças e doutrinas, escondidas em vasos por quase dois mil anos, ecoam o teor radicalmente dualista e apocalíptico dos escritos do Novo Testamento. Cópias de alguns desses manuscritos também foram encontradas em Massada, a fortaleza zelote que acabou vencida pelos romanos em 73 d.C., após o suicídio em massa dos que a defendiam. Somente nas últimas décadas, desde a descoberta desses documen­tos em 1947, os estudiosos da Bíblia tiveram acesso às valiosas informações ali contidas sobre as origens do movimento cristão. Os partidários em Qumran teriam, sem dúvida, aplaudido a atitude radical de Jesus virando as mesas de dinheiro no Templo durante as festas da Páscoa judaica.
Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus
Com base nos textos encontrados nas Escrituras gregas canôni­cas do Novo Testamento, há bons motivos para acreditar que muitos judeus aceitaram Jesus como o prometido Messias da linhagem de Davi. As mais antigas afirmações do fato de que ele era admitido como tal na comunidade cristã são encontradas na Epístola de Paulo aos Romanos (1:3), que foi escrita aproximada­mente em 57 d.C. Ela se refere a Jesus da seguinte maneira: "Acerca de seu Filho, nasceu da descendência de Davi quanto à natureza humana." O Evangelho de Marcos (71-75 d.C.) relata a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, quando o povo espalhou folhas de palma (João 12:13) diante do rei que montava um jumento. A imagem da palmeira, um símbolo para a nação judaica, aparecem moedas cunhadas nos tempos romanos.
O fato de Jesus ter sido considerado o Rei dos Judeus também é confirmado pela inscrição que. Pilatos mandou colocar acima da cruz em que ele foi sacrificado pelos soldados romanos: "Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”, abreviado para "INRI”. Reconhece-se hoje que a Galiléia, dita o berço de Jesus, foi um grande foco de atividades zelotes e anti-romanas durante o primeiro século, fato que pode ter sido relevante para a acusação de insurreição feita a ele.
Existem amplas evidências de que Jesus não era apenas um pobre carpinteiro ou o filho de um carpinteiro de uma obscura vila na Galiléia. Os evangelistas Mateus e Lucas, que escreveram aproximadamente no mesmo período (entre 80 d.C. e 85 d.C.), mas que desconheciam o trabalho um do outro, incluíram genealogias de Jesus no início de seus Evangelhos. Apesar de pequenas variações entre elas, um fato pode ser deduzido: ele estava sendo proclamado o tão esperado Messias davídico. O testemunho das duas Escrituras é de que o governador romano e os líderes judeus colaboraram na prisão e crucificação de Jesus porque ele era visto pelas autoridades de ambas as partes como um rebelde perigoso. Sua morte significava uma necessidade política para evitar rebeliões posteriores na Palestina. Foi considerado um incendiário exatamente porque o povo acreditava que se tratava de seu prometido rei e messias, O Ungido de Deus, o "rei justo" anunciado pelos profetas. Os Evangelhos nos fazem concluir que Jesus foi a escolha do povo porque seus milagres provaram a todos que ele era o eleito de Yahweh.
O poder do povo é, com freqüência, temido por um sistema repressor por ameaçar a estabilidade do status quo. De acordo com o que dizem os Evangelhos, escritos com o objetivo de converter cidadãos do Império Romano ao cristianismo, foi desejo das autoridades judaicas que Jesus fosse crucificado. Mas a crucificação não era um castigo aplicado pelos judeus. Se a acusação tivesse sido de blasfêmia, como é sugerido nessas Escrituras, a punição seria o apedrejamento pela comunidade judaica (como ocorreu com seu discípulo Estêvão, em Atos dos Apóstolos 7). A crucificação era o castigo reservado aos insurgentes. Tudo faz crer que a aclamação pública de Jesus como rei foi o que o levou à execução como inimigo de Roma.
Os Evangelhos relatam que Jesus não era apenas uma figura política, o Rei dos Judeus, mas também um líder religioso que exortava seu povo a arrepender-se e preparar-se para o Reino de Deus. Ele desafiou repetidamente os ensinamentos e as interpretações que os líderes religiosos faziam das Escrituras. E promoveu curas. No livro Jesus, the Magician (Jesus, o mago), fontes antigas do Oriente Médio são citadas numa tentativa de mostrar que Jesus foi um dos milagreiros errantes daqueles tempos. li Entretanto, segundo os relatos da época, é muito mais provável que ele tenha sido um curandeiro genuinamente carismático, que compreendia o fenômeno psíquico da cura como resultado da dinâmica da fé. E Jesus sempre dizia exatamente isto: ''A sua fé o fez inteiro”.
Segundo o Evangelho de Lucas, ele visitou a sinagoga em Nazaré e leu para a congregação um trecho da profecia de Isaías 61:1-2:
O Espírito do Senhor repousa sobre mim
porque o Senhor me consagrou pela unção.
Enviou-me a levar a boa nova aos humildes,
curar os corações doloridos,
anunciar aos cativos a redenção;
aos prisioneiros, a liberdade.
Há mais de dois mil anos, há um consenso por parte dos cristãos de que o homem que tomou para si essa passagem não era um simples mago. Ele era um recipiente terreno pleno do Espírito de Deus. E foi o seu poderoso carisma que levou, de maneira implacável, à sua crucificação como um incendiário político e à fuga imediata de sua família de Jerusalém.
O Cajado Florido e o Sangraal
O que diz a lenda sobre a fugitiva Sagrada Família? No Novo Testamento, o Evangelho de Mateus relata que a Sagrada Família fugiu para o Egito com o objetivo de evitar que seu filho fosse morto pelo rei Herodes, que estava preocupado com a sua reivindicação ao trono de Israel. José, o marido de Maria, recebeu uma mensagem em um sonho para fugir com ela e Jesus para o Egito (Mateus 2:13). Os modernos estudiosos da Bíblia acreditam que tudo isso é um mito usado pelo autor desse Evangelho para fazer cumprir as palavras do profeta: "...e do Egito chamei meu filho" (Oséias 11:1). A indicação da verdade nessa história é a forte tradição de perigo para a linhagem real de Judá. Um Evangelho apócrifo é a fonte da tradição de que o cajado de São José floriu para indicar que Deus o escolhera para ser marido de Maria e pai terreno de Jesus. Mas o "cajado florido" - mostrado na mão de São José nas igrejas católicas de todo o mundo - também serve para nos lembrar de que José era o guardião da "muda”, que seria o próprio Jesus, com base em uma profecia de Isaías: "Então brotará um rebento do cepo de Jessé, e das suas raízes um renovo frutificará" (Isaías 11:1).
Contudo, uma tradição derivada de uma antiga lenda francesa nos diz que... José de Arimatéia era o guardião do Sangraal e que a criança no barco era egípcia, o que significa, literalmente, "nascida no Egito”. Parece provável que depois da crucificação de Jesus, Maria Madalena tenha considerado necessário esconder-se no refúgio mais próximo para proteger seu filho ainda não nascido. José de Arimatéia, influente amigo de Jesus, pode ter sido o seu protetor.
Se nossa teoria está certa, a criança nasceu de fato no Egito, tradicional lugar de asilo para judeus cuja segurança se encontrava ameaçada em Israel. Alexandria era acessível a quem partia da Judéia e abrigava comunidades judaicas consolidadas na época de Jesus.12 É muito provável que tenha sido então o refúgio emergencial de Maria Madalena e José de Arimatéia. Anos mais tarde, eles teriam deixado Alexandria e buscado um lugar mais seguro no litoral da França.
Estudiosos de arqueologia e lingüística descobriram que os topônimos e lendas de uma região contêm "fósseis" de seu passado remoto. Os fatos podem ser alterados e as narrativas abreviadas no decorrer do tempo, mas traços "fossilizados" da verdade permanecem enterrados sob os nomes de pessoas e lugares. Todo ano, de 23 a 25 de maio, realiza-se um festival na cidade de Les-Saintes-­Maries-de-La-Mer, na França, no santuário dedicado a Santa Sara, a egípcia, também chamada de Sara Kali, a "Rainha Negra': As pesquisas revelaram que esse festival, cuja origem remonta à Idade Média, homenageia uma criança "egípcia" que acompanhava Maria Madalena, Marta e Lázaro quando de sua chegada à região, num pequeno barco, por volta do ano 42 d.C. Parece que se difundiu entre os habitantes locais a suposição de que a criança, por ser "egípcia”, tinha pele escura. Como não se encontrou nenhuma outra explicação razoável para a sua presença, deduziu-se, posterior­mente, que ela devia ter vindo de Betânia como serva da família.
O nome Sara significa "rainha" ou "princesa" em hebraico. Essa Sara é também caracterizada nas lendas locais como uma "jovem", não mais que uma criança. Existe, portanto, num pequeno povoa­do do litoral da França, um festival anual em homenagem a uma menina de pele escura chamada Sara. O "fóssil" dessa lenda está no fato de a criança se chamar "princesa': em hebraico. Uma filha de Jesus nascida depois da fuga de Maria Madalena para Alexandria teria cerca de 12 anos na época da viagem à Gália referida na história. Ela, como os príncipes da linhagem de Davi, é simbolicamente negra, "não reconhecida nas ruas" (Lamentações 4:8). Madalena era ela própria o "Sangraal”, no sentido de ter sido o "cálice", ou receptáculo, que um dia carregara in utero a descendência real. A negritude simbólica da Noiva dos Cânticos e dos príncipes davídicos das Lamentações se estende a essa Maria escondida e sua filha. O festival de Sara Kali, a Negra Sara, parece assim acontecer em homenagem a essa mesma criança simbolicamente negra. (No capítulo VIII, analisarei mais detalhadamente os santuários da Madona Negra na Europa Oriental.)
Acredita-se que as pessoas que, nos séculos posteriores, conhece­ram essa lenda e a identidade de Madalena como mulher de Jesus a equipararam à Noiva Negra dos Cânticos. Ela era a Noiva-Irmã e a Amada. Sua "negritude" teria sido simbólica de sua condição oculta. Tratava-se da rainha desconhecida - não declarada, repudiada e caluniada pela Igreja no transcorrer dos séculos, numa tentativa de negar a linhagem legítima e manter suas próprias doutrinas sobre a divindade e o celibato de Jesus.
Fósseis da verdade permanecem enterrados em símbolos, nomes de pessoas e lugares, rituais e contos folclóricos. Ao entendermos isso, torna-se plausível que a fuga para o Egito tenha sido empreendida pelo "outro José”, José de Arimatéia, e a "outra Maria”, Maria Madalena, após a crucificação, para proteger dos romanos e dos fi­lhos de Herodes o filho ainda não nascido de Jesus. As discrepân­cias na história e o óbvio pulo de uma geração podem ser facilmente compreendidos à luz do perigo que rondava a linhagem ­exigindo todo o segredo possível quanto ao seu esconderijo - e em decorrência do tempo que transcorreu antes que o relato fosse redigido. Parece ser mais um caso de um mito que foi se formando, uma vez que a verdade era perigosa demais para ser contada.
A Conexão Merovíngia
Alguns indícios sugerem que o sangue real de Jesus e Maria Madalena acabou circulando nas veias dos monarcas merovíngios da França. O termo "merovíngio" talvez seja ele próprio um fóssil lingüístico. As tradições da família real dos francos mencionam um antepassado de nome Meroveu (Mérovée, em francês). Mas a palavra "merovíngio" se separa foneticamente em sílabas facilmente reconhecíveis: mer e vin, Maria e videira. Assim decomposta, seria possível considerá-la uma alusão à "Videira de Maria" ou talvez à "Videira da Mãe".
O emblema do rei merovíngio Clóvis era a flor-de-lis (íris, em inglês). O nome latino da flor da íris, típica de países do Oriente Médio, é gladiolus, ou "pequena espada". A flor-de-lis de três folhas da casa real da França é um símbolo masculino, na verdade uma imagem gráfica do compromisso da circuncisão, no qual estão implícitas todas as promessas de Deus a Israel e à casa de Davi. Thomas Inman discute exaustivamente a natureza masculina da "flor de luz" em Ancient Pagan and Modern Christian Symbols (Símbolos cristãos modernos e pagãos antigos), do século XIX. Não deixa de ser engraçado que esse mesmo símbolo masculino, a "pequena espada”, seja hoje o emblema internacional do escotismo!
A afirmação de que esse símbolo representa a Trindade é uma racionalização baseada em sua imagem de três elementos em um só. Esse "lírio" de três pontas é um antigo símbolo de Israel: os remates de duas colunas fálicas do Templo de Salomão, Jaquim e Boaz foram entalhados com "trabalhos em forma de lírio" (1 Reis 7:22). O famoso trevo de São Patrício pode ser um símbolo legítimo da Trindade, mas penso que a flor-de-lis se refere especifica­mente à linhagem davídica de Israel e que tenha sido usada como emblema pelos reis merovíngios na Europa.
A tumba do rei merovíngio Childerico I (que morreu aproxi­madamente em 481 d.C.) foi descoberta em 1635, em Tournai, e continha trezentas abelhas de ouro. A abelha, o totem da linhagem dos reis merovíngios, era o símbolo sagrado da Deusa do Amor e também um símbolo egípcio de realeza. Colônias de abelhas são sociedades matriarcais que reconhecem a rainha como sua monarca. Acredito que o totem da abelha de ouro foi escolhido conscientemente para refletir a descendência merovíngia da casa real de Davi (e, portanto, de Jesus) por meio da linhagem feminina e que esse clã honrava a viúva real, Maria Madalena, e sua filha, a quem a lenda chama de Sara.
A linhagem real de Israel deve ter sobrevivido à perseguição e, por fim, reapareceu nos merovíngios da Europa e em famílias aparentadas, que ocultaram sua genealogia durante vários séculos. A primeira Cruzada (1098 d.C.) poderia muito bem ter sido uma tentativa de restituir a uma herdeira da linhagem davídica o trono de Jerusalém por meio de Godofredo de Bouillon (também conhecido como Godofredo de Lorena), que era, segundo a lenda, um descendente merovíngio.
Com a conquista de Jerusalém, em 1909, os líderes da Cruzada instalaram um patriarca na Igreja do Santo Sepulcro. E em seus preceitos litúrgicos encontramos o bizarro fato de que todas as fes­tividades da Virgem Maria fossem marcadas por vestimentas negras. Sugeriu-se que isso representava uma referência ao Cântico dos Cânticos, mas constituiu uma diferença significativa em relação ao costume universal da Igreja segundo o qual vestes brancas devem ser usadas em todas as liturgias nas celebrações relacionadas a Maria. Talvez os trajes negros sejam, mais uma vez, uma referência simbólica à "outra Maria': a Maria oculta, a Noiva Perdida dos Cânticos dos Cânticos, ultrajada e repudiada pela cor­rente ortodoxa da Igreja - a rainha exilada, cuja verdadeira identidade foi mantida em segredo por vários séculos; primeiro, para protegê-la das autoridades romanas e dos herdeiros de Herodes e, depois, da hierarquia da Igreja Católica Romana. Essa Maria "negra” seria um eco poético da Noiva Negra do cântico bíblico, a Noiva do sacrificado Rei-Pastor, o Noivo messiânico de Israel.
Essas associações com a Noiva Negra podem ser o motivo da imensa popularidade de numerosos santuários dedicados à Madona Negra que se encontram por toda a Europa Ocidental. A imagem da Noiva-Irmã do mundo antigo foi facilmente associada à mulher de Jesus Cristo, o Ungido. Réplicas clássicas de Deusas da Terra, da Lua e do Amor (Ísis, Ártemis de Éfeso e outras) eram caracteristicamente negras.
Em suma, as duas fugitivas reais de Israel, mãe e filha, poderiam ser logicamente representadas na arte européia antiga como mãe e filha de pele escura, aquelas que se ocultam. As Madonas Negras dos antigos relicários da Europa (séculos V ao XII) talvez fossem veneradas, portanto, como símbolos dessa outra Maria e de sua filha, o Sangraal, que José de Arimatéia levou em segurança até o litoral da França. O símbolo do homem da casa real de Davi seria um cajado florido; o da mulher, um cálice - uma taça ou receptáculo - que contém o sangue real de Jesus. Exatamente o que se diz ter sido o Santo Graal!
CAPÍTULO IV
O Despertar do Século XII
A versão da história cristã à qual me refiro não é ensinada nas igrejas oficiais, embora esteja mais próxima da verdade do que a versão ortodoxa. O fato é que houve muitas outras correntes anteriores de cristianismo que não sobreviveram. Por exemplo, a Igreja de Jerusalém - da qual Tiago, o irmão de Jesus, foi o primeiro líder - permaneceu bastante judaica em sua orientação e não igualava Jesus a Deus. A comunidade cristã em Jerusalém continuou leal ao Templo e à Tora do judaísmo. Tiago e Pedro, dois dos mais importantes líderes da comunidade de Jerusalém, mostraram-se claramente abalados pela versão do cristianismo ensinada por Paulo. Nas Epístolas de Paulo e nos Atos dos Apóstolos encontram-se evidências de que ambos repudiaram alguns desses ensinamentos.
Os seguidores da doutrina pregada por Paulo começaram até a falar com desprezo sobre a família de Jesus e o grupo original de apóstolos, que, segundo eles, não haviam compreendido Jesus inteiramente. Essa visão é sugerida em Marcos 3:21, relato segundo o qual família e os amigos de Jesus achavam que ele havia enlouqueci­do. Os autores do Evangelho afirmaram também que Jesus repreendeu os apóstolos por terem se mostrado pouco inteligentes. Pedro, em especial, é citado por não ter entendido a necessidade da crucificação e por ter negado Jesus três vezes na noite de sua prisão.
Diferentes cristianismos se desenvolveram nos primórdios da Igreja, e acalorados debates entre facções prosseguiram por vários séculos. Após a debandada da comunidade cristã de Jerusalém em decorrência da Revolta Judaica de 66-74 d.C., não havia nenhuma versão autorizada de cristianismo que pudesse se declarar a única fé autêntica. Com o passar do tempo, algumas seitas foram banidas da Igreja, enquanto outras conseguiram se estabelecer. Os ebioni­tas, cuja doutrina espiritual se assemelhava à da primitiva comu­nidade de Jerusalém de Tiago e Pedro, foram mais tarde conside­rados hereges porque a sua "precária" cristologia não atribuía divindade ao Jesus de Nazaré histórico.
Os documentos e ensinamentos das seitas e facções divergentes não sobreviveram ao séculos. Em muitos casos, a única menção aos preceitos heréticos é encontrada na polêmica de um ou outro padre da Igreja que desejava expor o seu erro. Os quatro primeiros sécu­los da Igreja foram marcados por tumultos, perseguições e interpretações heterodoxas. Em 325 d.C., o Concílio de Nicéia procla­mou que Jesus era o "Filho Unigênito de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, consubstancial ao Pai': Isso se tornou o Credo ortodoxo do Império Romano e nenhuma variação era tolerada. Missionários partiram para converter tribos pagãs nas esquinas mais remotas da Europa, pregando o Evangelho como determinado por seu Mestre Jesus e batizando em nome da Trin­dade: o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Após o decreto do imperador Teodósio que estabeleceu o cristianismo como religião oficial do Império Romano em 380 d.C., as versões que não coincidiam com a recém-empossada hierarquia de bispos foram cruelmente perseguidas e seus ensinamentos destruídos.
A Idade das Trevas
Por causa dos saques e tumultos ocorridos entre os séculos IV e X na Europa, perpetrados pelas tribos bárbaras - francos, visigodos, celtas, hunos e, mais tarde, nórdicos -, os documentos escritos dessa época tornaram-se relativamente escassos. Há também evidências de que os textos que existiram foram intencionalmente omitidos durante o período que hoje denominamos Idade das Trevas.
A maioria das tribos bárbaras da Europa Ocidental converteu-se à heresia ariana, uma forma de cristianismo articulado por um indivíduo nascido na Alexandria no século IV; que foi condenado com veemência pelo Concílio de Nicéia. A heresia ariana negava as doutrinas da Santa Trindade e a divindade de Jesus, pregando, em vez disso, a existência de um Deus Todo-Poderoso e de seu filho, um Jesus inteiramente humano. Essa versão do cristianismo se difundiu em toda a Europa Ocidental durante os séculos V e VI.
A história da Idade das Trevas já foi incansavelmente reconstruí­da com o auxílio de documentos encontrados em monastérios e clausuras e também de numerosos achados arqueológicos. Por meio deles, a trágica história dos obscuros reis merovíngios veio à luz: Childerico III, o último dos legítimos monarcas dessa linhagem, foi deposto em 751 d.C. por Pepino, cujos descendentes,
por intermédio de seu neto Carlos Magno, se tornaram conhecidos como carolíngios. No Natal de 88 d.C., o Papa conferiu o título de Sagrado Imperador Romano a Carlos Magno, que, durante o seu reinado, encorajou as artes e as letras, incluindo a cópia e preservação de manuscritos. Os que viveram nesse período não o cha­mavam de Idade das Trevas. Os grandes centros da civilização européia eram então a Irlanda celta, a Espanha moura e a costa mediterrânea (atual França) - esta última foi o berço das lendas e da heresia do Sangraal. Essa região era conhecida como Occitânia, Languedoc ou Midi. Atualmente, chama-se Provença.
O Berço do Despertar
Um grande número de estudantes da história européia concorda que o primeiro despertar verdadeiro da Idade das Trevas na Europa não foi marcado pelo Renascimento no século XV, como é costume afirmar, mas por alguns eventos que ocorreram no Sul da França no século XII. Muitas obras foram escritas sobre a influência das Cruzadas, a troca de idéias entre Oriente e Ocidente, o impacto da arte e do pensamento muçulmanos na região e a ascensão dos artesãos e da burguesia. Provença, no entanto; já era uma área de relativos conhecimentos e progresso muitos séculos antes das Cruzadas, um lugar onde existia um vivo interesse pela arte, pela literatura e pelas religiões islâmica e judaica, além de tolerância em relação a novas idéias científicas e filosóficas. Essa abertura proporcionou à região do Midi uma sofisticação sem paralelo no Norte da Europa continental.
Talvez a mais importante de todas as numerosas e profundas mudanças sociais na Europa do século XII tenha sido uma crescente valorização do feminino. Essa transformação radical teve início em Provença, onde as práticas em nada se pareciam com as do resto do mundo medieval, que adotava, basicamente, uma atitude misógina. A hostilidade em relação às mulheres baseava-se na posição firmada pelos padres da Igreja, que era, em parte, ori­ginária da história de Adão e Eva no paraíso (Gênesis 1:2).
Os escritos dos patriarcas cristãos, sobretudo os dos santos do século V - Agostinho de Hipona (354-430) e Jerônimo (342-420) -, retratavam a mulher como um ser inferior, tanto no aspecto moral quanto espiritual. Teólogos posteriores chegaram até a discutir se a mulher teria ou não uma alma. Mulheres, sexo e corpo humano, assim como todos os prazeres terrenos, foram oficialmente considerados distrações e tentações que poderiam atrair o homem para outras atividades, desviando-o do caminho espiritual.
Nos tempos medievais, a maior parte do mundo cristão tinha crenças radicalmente dualistas sobre as mulheres. A existência material, a carne, o diabo e o sexo feminino eram colocados juntos como a fonte do mal, que impedia os homens de alcançarem a união espiritual com Deus. Para libertar a alma e permitir que ela se dedicasse às atividades espirituais, esses males precisavam ser negados e vencidos. Desejos da carne deviam, se possível, ser repudiados e ignorados.
As idéias de Santo Agostinho exerceram enorme influência nas posturas em relação às mulheres e ao sexo e parecem refletir a heresia maniqueísta, assim denominada por ter sido fundada por Mani, que morreu em 227 d.C. Agostinho foi um adepto dessa doutrina até à sua conversão ao cristianismo, aos 39 anos, depois de uma juventude de libertinagem. Mani havia ensinado que o Deus do Antigo Testamento era um deus pela metade, criador do mundo e de todos os males, que retinha os espíritos puros na "prisão" da carne. As mulheres, obviamente, eram consideradas agentes principais dessa perpetuação de desgraças do mundo físico, e a concepção de crianças era desestimulada. Após a sua conversão, Agostinho tornou-se um importante intérprete da doutrina e das Escrituras católicas, trazendo consigo resíduos de sua antiga visão de mundo dualista e misógina.
Na Europa medieval, as mulheres não tinham direitos legais e viviam sob a tutela dos pais ou maridos. Excluídas da vida civil e também impedidas de possuir propriedades, eram meras servas. A única exceção significativa era a atitude que o povo do Sul da França mantinha em relação a elas. Nessa região, desde o século X, as mulheres recebiam feudos e domínios por direito de herança. As razões para isso podem ter sido os fortes laços do povo com as práticas romanas igualitárias ou com tradições tribais ainda mais antigas.
Contudo, suspeito de uma razão ainda mais óbvia. Desde o alvorecer da cristandade, essa região teve uma expressiva história de honra ao sexo feminino. Nos séculos XI e XII, as mulheres de Provença eram alvo de consideração especial. Um exemplo clássico de "mulher liberada" no mundo medieval era Eleanor de Aquitânia (1122-1204), cuja notoriedade e poder como esposa e mãe de reis abalou a Europa por várias décadas.
As Cruzadas são sempre citadas como catalisadoras do novo despertar da cultura européia, após o longo período da Idade das Trevas. Contudo, centenas de anos antes dessas expedições Provença havia mantido uma iluminada relação com centros de estudos mouros e judaicos na Espanha e no Norte da África, o que fez com que sua próspera cultura sofresse a influência do modo de vida liberal e tolerante desses povos. Na verdade, grande parte da área de Provença fora incluída no reino judaico de Septimânia, no século VIII, sob o comando de Guillem de Gel1one, um príncipe judeu descendente dos merovíngios. E essa região também fora, por vários séculos, o centro de um culto de Maria Madalena, como pode ser confirmado no grande número de capelas, fontes, nascentes e outros marcos que exibem o seu nome. Madalena era a santa padroeira de jardins e vinhedos, a mediadora da fertilidade e da beleza, a alegria da vida. Eram seus os antigos domínios das Deusas do Amor da Antiguidade. Não foi por acidente que o culto da Rosa (rose, em francês, um anagrama de Eros) floresceu e se desenvolveu no jardim de Provença.
Quando Pedro, o Eremita, monge que estimulou a primeira Cruzada, pregou nas cidades da Europa na última década do século. XI, declarou que era hora de uma "guerra santa” para recuperar Jerusalém, que estava sob o domínio dos sarracenos. Ele estava, figurativamente, carregando uma ampulheta. Um milênio havia se passado desde a destruição do Templo de Jerusalém pelos romanos, que o queimaram no século 70 d.C, arrasando toda a cidade. Pedro anunciou aos centros da Europa que havia chegado a hora de restaurar a Cidade Santa e reconstruir o Templo. Seu plano secreto e de seus influentes amigos era colocar no trono de Jerusalém um descendente da casa de Davi e, dessa maneira, "ajudar" Deus a cumprir a profecia do milênio de paz profetizada nas Escrituras hebraicas.
Todos os cavaleiros da Europa capazes de empunhar armas embarcaram para a Terra Santa, alguns a pé, outros em navios. No ano de 1099, seu sonho finalmente se concretizou: os sarracenos foram vencidos e Godofredo de Lorena, um nobre que, como vimos, era provavelmente de origem merovíngia, recebeu o título de rei de Jerusalém. O grupo que havia orquestrado esse plano parecia satisfeito com os resultados de seu golpe político. Com um descendente de Davi finalmente no trono, muitas histórias, poesias e canções - e também as próprias lendas sobre o Graal - começaram a proliferar. Por toda a cristandade, uma cultura emergente exaltava o popular herói Godofredo, os cruzados e Nossa Senhora. As sementes dessa cultura, originariamente levadas para o Oeste da Europa por Maria Madalena, haviam germinado no solo fértil de Provença.
Um dos aspectos mais importantes do período das primeiras Cruzadas é a história da rápida ascensão e eclipse da amplamente poderosa Ordem dos Cavaleiros Templários. Essa organização de monges-guerreiros, formada oficialmente nas primeiras décadas do século XII, após a reconquista de Jerusalém, foi prestigiada por papas e reis por quase dois séculos, antes de ser aniquilada sob a acusação de heresia na primeira década do século XIV. Os autores de O Santo Graal e a linhagem sagrada pesquisaram exaustiva­mente as origens e a história dessa ordem. Concluíram que ela esteve intimamente envolvida com as seitas heréticas da cristandade que acreditavam que Jesus era completamente humano, que havia se casado, que seu sangue real ainda fluía nas veias das fa­mílias nobres de Provença e que as promessas messiânicas das Escrituras hebraicas um dia seriam cumpridas por um descendente dele. Muitos desses cavaleiros pertenciam a famílias nobres de Provença, uma área que sempre se mantivera afastada das dou­trinas oficiais de Roma.
Os Hereges de Provença
O Evangelho alternativo - a heresia ariana e, mais tarde, as heresias cátara e valdense - floresceu em Provença nos primeiros 12 séculos da cristandade. Embora os dogmas dessas doutrinas apresentassem diferenças, um aspecto sempre ficou claro: essa região nunca aceitou totalmente a versão ortodoxa do catolicismo romano e o seu Credo. E tinha seus motivos.
O termo "albigense" foi cunhado em 1165 d.C., após a realização de um concílio da Igreja na cidade de Albi, para promulgar um decreto condenando os hereges do Midi - em particular, a seita dos cátaros. Com base nessa determinação, os hereges de toda a região foram, de maneira indiscriminada, denominados albigenses, sem que se levassem em conta os dogmas da heresia da qual eram adeptos. Os habitantes desse lugar mostravam-se tolerantes em relação às culturas judaica e moura, desejando compartilhar de suas tradições filosóficas e misteriosas e criticar a hierarquia da Igreja oficial, da qual vários sacerdotes, como é amplamente admitido, eram culpados de corrupção e abusos praticados nos séculos XI e XII. Com freqüência, parecia haver uma lacuna entre seus ensinamentos e sua prática dos Evangelhos. Toda a costa norte banhada pelo Mediterrâneo fermentava com a estimulante troca de informações da época, e "liberdade" era o grito de guerra. & famílias de Provença não eram aliadas do rei da França nem desejavam estar submetidas a Roma. Sua característica principal era a independência.
A Fé dos Cátaros
Os cidadãos da região, sobre os quais a heresia cátara teve uma influência ainda maior no século XII, eram simples agricultores e camponeses. Essas pessoas ouviam os sermões dos pregadores itinerantes, os cataris, denominados "os puros': que iam até elas e trabalhavam em seus campos, compartilhavam de seu pão e doutrinavam, estimulando-as a levar uma vida simples e segundo o espírito de humildade de Jesus. Conhecidos como "os crentes': eles acreditavam que a sua versão do cristianismo era mais pura e mais antiga do que a corrente ortodoxa, além de estar mais próxima dos ensinamentos de Jesus e dos apóstolos. Eram, em sua maioria, vegetarianos e pacifistas, adeptos de um tipo de cristianismo carismático, similar ao descrito nos primórdios da Igreja em Atos dos Apóstolos. Os poucos documentos que sobreviveram à censura da Inquisição comprovam que a prática cátara do cristianismo tinha raízes remotas e puras, refletindo o vigor dos cristãos primitivos em seu desabrochar.
As acusações de maniqueísmo e dualismo radical dirigidas pela Inquisição contra essa seita eram, com toda certeza, exageradas. Não há nenhuma menção a Mani nos documentos cátaros remanescentes. Parece mais provável que as verdadeiras raízes do catarismo estejam na prática cristã do primeiro século e que elas tenham se desenvolvido com base no mesmo dualismo apocalíptico das seitas judaico-cristãs e da comunidade do deserto de Qumran. O interesse dos cátaros pela vida espiritual e a sua falta de entusiasmo pela instituição do casamento - união que condenaria o espírito a uma existência carnal- refletiam as crenças das comunidades apocalípticas judaico-cristãs daquele século.
São Paulo e os primeiros adeptos do modo de vida cristão acre­ditavam que o fim dos tempos estava tão próximo que o casamento não fazia sentido. Famílias nobres que aderiram abertamente à fé cátara e que conseguiram sobreviver refutaram as acusações dos inquisidores de que os membros da Igreja herética tentavam desvalorizar a instituição da família, condenando o matrimônio e a concepção de filhos. É mais provável que eles se recusassem a se casar em cerimônias ortodoxas por julgarem que tais celebrações não eram válidas ou necessárias. Pelo mesmo motivo, essas pessoas não aceitavam o batismo da Igreja Romana.
Os cátaros pregavam um estilo de vida simples e uma fé radical na presença e orientação permanentes de Deus. Não era preciso ter laços com o maniqueísmo para acreditar que o demônio era um "Príncipe deste mundo". Palavras de Jesus demonstram que essa também era a sua crença (João 12:31). Os cátaros não parecem ter sido maniqueístas, mas adeptos dos textos literais dos Evangelhos, dos quais cada família possuía uma cópia. Para esses hereges albigenses, a fé não era uma doutrina em que se devia acreditar, mas uma vida a ser vivida. Eles chamavam a si mesmos de cristãos.
Fundamental aos ensinamentos da Igreja do Amor - outro nome para a Igreja alternativa - era uma profunda devoção a Jesus, o Portador da Luz, à sua mãe e aos seus amigos. Enquanto a Igreja de Roma ensinava obediência às regras e a observância rigorosa de suas leis e proibições, a Igreja do Amor ("Romã” de trás para frente!) ensinava que a vida de cada indivíduo deveria ser transformada em algo sagrado pela ação do Espírito Santo na sua mente e no seu coração. Seus adeptos honravam Jesus como profeta, sacerdote, rei e Messias - um agente totalmente humano e o Filho Ungido de Deus. Mas entendiam o seu próprio papel como recipientes terrenos desse mesmo Espírito Santo. Tinham consciência do conteúdo mitológico e místico dos ensinamentos de Jesus como um caminho para a santidade e a transformação, bem como das conexões desse conteúdo com todo o fluxo de revelação e pensamento religioso do mundo clássico. Para eles, o mergulho na água batismal e a presença na missa aos domingos não eram suficientes para a salvação. Sua religião era uma prática da presença de Deus e do crescimento diário das virtudes da caridade, humildade e serviço ao próximo, cujos modelos eram a vida e os ensinamentos do próprio Jesus.
No Midi, o antagonismo com a Igreja Católica era amplo e pro­fundo. Em Provença e em muitos outros lugares, sabia-se que a hierarquia da Igreja institucional não vivia segundo a mensagem do Evangelho. Freqüentemente, os clérigos exploravam os pobres e levavam uma vida de relativo luxo, enquanto os paroquianos passavam fome. As seitas albigenses eram claramente anticlericais e antieclesiásticas. Os cátaros formaram a sua própria Igreja em oposição ao que acreditavam ser falsos ensinamentos de Roma. Eles repudiavam o ritual da missa e também a cruz, que consideravam um instrumento de tortura que não poderia ser alvo de veneração.
Afirmavam que a sua Igreja havia conservado o Espírito Sagrado, conferido aos apóstolos originais no Pentecostes e passado adiante por meio da imposição de mãos, o único ritual que julgavam autêntico. Sua oração fundamental era o pai-nosso, presente no Evangelho de Mateus. O ritual cátaro, sobre o qual há dois textos remanescentes, demonstra que os adeptos dessa seita possuíam documentos antigos diretamente inspirados pela comunidade cristã primitiva.
Os cátaros não precisavam de um sacerdote para realizar cultos nem de um espaço físico para guardar artefatos e relíquias. Sua fé era praticada nas casas e nos campos. Desprezavam a necessidade de igrejas, relíquias e sacramentos. Entre eles, homens e mulheres eram considerados iguais, e a mulher tinha o direito de herdar e possuir propriedades. As mulheres também podiam pregar, uma prática que havia começado na comunidade cristã primitiva mas que foi abandonada pelo catolicismo romano. Isso refletia a consideração que as mulheres, inclusive Maria Madalena, já haviam merecido quando a Igreja ainda engatinhava. Os pregadores cátaros, de ambos os sexos, viajavam pelos campos aos pares, exatamente como faziam os discípulos de Jesus na Palestina, partilhando a comida, trabalhando lado a lado com os pobres e pregando a vida simples e pura dos espiritualmente iluminados. São Domingos e, mais tarde, São Francisco de Assis ficaram tão impressionados com os métodos cátaros de evangelização que os tomaram como exemplo para seus frades mendicantes, determinando que fizessem votos de pobreza e caridade.
Uma característica extraordinária dos cátaros era a sua insistência em ver a Bíblia traduzida para o seu dialeto, denominado língua d'oc, e fazer com que as pessoas aprendessem a ler os Evangelhos de Jesus em seu próprio idioma. Para isso, diversas fábricas de papel foram instaladas em toda a região, impulsionando o ressurgimen­to da arte, do pensamento e das letras em toda a Europa. As crianças cátaras eram alfabetizadas, e as meninas tornavam-se mais letradas do que os meninos. Provença era uma região iluminada.
Em 1209, o Vaticano lançou uma cruzada contra Provença, inclusive contra os nobres que ali viviam, muitos dos quais eram adeptos da heresia cátara. Aliados do rei da França, os exércitos do Papa devastaram o Midi por toda uma geração, e sua vitória culminou em um massacre no Montségur, um seminário cátaro. Nesse lugar, em 1244, um grupo de hereges sitiados acabou vencido, e as mais de duzentas pessoas que se recusaram a repudiar suas próprias crenças foram queimadas vivas. A espinha dorsal do que fora conhecido como catarismo acabou sendo quebrada pela Cruzada Albigense, denominação desse terrível episódio, e a florescência que havia começado no século XII foi arrancada ainda em botão.
A Inquisição, instituída formalmente em 1233, interrogou com crueldade e condenou os hereges, executando milhares deles. Os registros desse tribunal eclesiástico nem sempre esclarecem quais eram as crenças heréticas consideradas tão ofensivas pelos padres de Roma. Na verdade, a maior parte dos documentos da heresia albigense foi destruída. Naturalmente, não era do interesse do Vaticano e do seu braço forte, a Inquisição, guardar escritos que poderiam divulgar exatamente as doutrinas que eles tentavam, a todo custo, destruir.
Ao examinarmos a Cruzada Albigense, fica bastante claro que ela foi uma tentativa de forçar uma região inteira a aceitar a ortodoxia de Roma e de destruir as famílias que resistissem. Desde que o pensamento, a cultura e as crenças de Provença foram considerados divergentes da versão ortodoxa da fé, houve numerosas tentativas de eliminá-los. A verdade é que a região inteira se opunha, por motivos diversos e de muitas formas, à hegemonia da Igreja de Roma.
Nós já discutimos um aspecto fundamental desse profundo desencanto com a Igreja oficial: a crença de que Jesus era casado e tinha herdeiros era natural de Provença. Acreditava-se que Maria Madalena vivera naquela terra e fora enterrada ali com seu irmão, sua irmã e vários amigos próximos. O mesmo aconteceu com as genealogias secretas das famílias nobres locais. Após a Cruzada Albigense, filhas sobreviventes das famílias nobres do Midi foram forçadas a casar-se com pessoas do Norte, provavelmente para dissipar as reivindicações de certos clãs do Sul de que eram os únicos a carregar em seu sangue a linhagem merovíngia. Isso não era novidade, uma vez que, para consolidar sua pretensão ao trono dos francos, o próprio pai de Carlos Magno havia desposado uma princesa merovíngia.
O florescimento do princípio feminino em Provença tinha uma causa específica, amplamente negligenciada pelos historiadores, que sugeriram que os cruzados restabeleceram as novas tendências do Oriente Médio: os adeptos da oculta Igreja do Graal acreditavam que era hora de reclamar sua herança e tornar pública a sua versão da fé cristã. O rei de Jerusalém era um descendente de Davi. O ungido davídico recebera a oferta do trono de seus pais, na pessoa de Godofredo de Lorena, em 1099.
Depois que o herdeiro de Godofredo de Lorena foi nomeado rei de Jerusalém, poetas tornaram-se mais livres para falar das histórias e lendas do Sangraal, e um grande número de contos sobre o assunto começou a surgir. Os poetas que viviam nas cortes da Europa sentiam-se, finalmente, livres para expor suas narrativas, procurando mencionar o prestígio e o importante papel da Família do Graal. As histórias de Parsifal e sua busca pelo Santo Graal eram ouvidas em todas as cortes. As lendas do rei Artur, escritas pela primeira vez por Nennius, um clérigo galês do século IX, começaram a se disseminar em todas as direções - sempre com a busca pelo Graal como assunto subjacente. Entre os poetas da corte do século XII que criaram os primeiros épicos sobre o tema estão Guiot de Provins, Robert de Boron, Chrétien de Troyes, Walter Map e Wolfram von Eschenbach.
Para alguns, a primeira versão da história do Graal já era conhecida dos mouros, na Espanha, e, mais tarde, chegou à França. Mas o Sangraal original das lendas do francês antigo é um mito cristão distinto, bem anterior à presença moura na Espanha e até à fé islâmica. É natural de Provença. Como vimos, as primeiras lendas indicam que o Sangraal foi conduzido a Les-Saintes Maries-de­la-Mer, na costa, em 42 d.C. Tempos depois, ele pode ter sido associado às histórias celtas, também nativas da Europa, sobre o mágico caldeirão de Bran; porém, esse recipiente não é chamado de sangraal - nome que é reservado especificamente ao cálice ou "receptáculo" que guardou o sangue de Cristo.
Os Trovadores
Um interessante aspecto da Cruzada Albigense contra os sectários de Provença é o destino dos trovadores. Esses cantores e compositores dos séculos XII e XIII enalteciam as virtudes de sua "Senhora" - uma mulher que era, sob todos os aspectos, bela e adorável, cujos servos eles desejavam ser, cujos favores desejavam obter e cujas qualidades eles não poderiam deixar de cantar. Ela era freqüentem ente chamada de Dompna nas canções, palavra em língua d'oc para Domina, que, em latim, é o feminino de Dominus, ou "Senhor': (O título mais comum dado a Jesus nas liturgias latinas da Igreja Católica é Dominus.)
A Dompna dos trovadores era a fonte da alegria e do entusiasmo de suas vidas, seu objetivo para tomar nas mãos a cruz dos cruza­dos e devolver a Terra Santa à cristandade. Ela era sua mentora e patrona. Várias vezes apresentavam-na como um amor secreto, embora cantassem suas qualidades em voz alta! E tudo o que sabiam sobre ela era mantido em segredo, inclusive o seu nome. Tratava-se, simplesmente, da "Senhora': O trovador mostrava-se como seu vassalo humilde e obediente, aquele que lhe jurou segredo e fidelidade. Sua única remuneração: tornar-se enobrecido por sua associação com a sua Senhora.
Exemplos desse sentimento são freqüentes nas poesias dos trovadores, como podemos ver nesses versos de uma canção do poeta Arnaut Daniel, do século XII:
A cada dia sou melhor e mais puro,
pois sirvo à senhora mais nobre do mundo,
e a venero, digo isso a todos.
Os sentimentos de adoração a Dompna eram tão comuns que alguns estudiosos já sugeriram que talvez estivessem todos cantando louvores à mesma Senhora ou a um ideal "feminino”, e não a uma mulher em particular (embora muitos poemas fossem clara­mente endereçados a uma mentora ou amada específica).
Estudiosos modernos que se dedicaram ao gênero das canções de amor dos trovadores de Provença chegaram a dizer que os poetas eram cátaros não-declarados e que essa Senhora era o próprio culto ou heresia, a Igreja do Amor que lhes dava consolo e inspirava suas obras. Denis de Rougemont, em particular, é citado como um indicativo dessa tese. O trovador Peire Vidal louvava e agrade­cia a certas cortes em Provença por sua generosa hospitalidade. Todas elas eram conhecidas por terem sido uma "casa-mãe" para a heresia cátara.
É verdade que esses artistas foram interrogados por enviados especiais do Papa e, mais tarde, pela Inquisição, criada com o claro objetivo de identificar hereges em Provença, como de fato ocorreu com os menestréis. Em 1209, o trovador Gui D'Ussel recebeu de um emissário do Papa o aviso de que deveria parar de compor. li Muitos trovadores foram exilados, enquanto outros modificaram suas canções. E a Senhora acabou se tornando idealizada e imortal, um princípio feminino eterno ou, freqüentem ente, a "Virgem Santa Maria". Mas a Santa Maria original dos poetas da corte era, acredito eu, a santa patrona da região, onde capelas dedicadas a Maria Madalena são comuns e onde o seu culto começou a florescer no final do século VIII.12 Ela era a sua Domina, a contra­partida feminina de Dominus, o Senhor - não uma prostituta, mas uma Dama, uma Senhora.
O Culto Crescente da Virgem Mãe
A civilização que florescia no século XII, sob o pacífico abrigo de Nossa Senhora, encorajou os estudos de astronomia e matemática, medicina e misticismo, arte e arquitetura. Essas áreas de conheci­mento, que incluíam a antiga prática da geometria sagrada, foram enriquecidas pelo contato com a altamente desenvolvida civilização islâmica. Em breves 120 anos, entre a volta dos veteranos da primeira Cruzada até a Inquisição dar início à repressão, a civilização medieval prosperou e se desenvolveu.
No século XIII, percebendo o perigo que correria caso permitisse a circulação de rumores sobre o casamento de Jesus e a existência de seus descendentes, a Igreja de Roma agiu com rapidez e firmeza para assegurar que a mulher venerada pelos fiéis era a mãe de Jesus, e não a sua esposa. Todos os cristãos honravam a Virgem Mãe e buscavam consolo em sua intervenção. Entre os muitos santuários a ela dedica­dos distingue-se a Catedral de Chartres -lugar de um antigo culto à Madona Negra -, erigida ao redor da estátua conhecida como "Nossa Senhora Subterrânea”, localizada em uma cripta.
Peregrinos visitam o santuário de Nossa Senhora em Chartres desde os tempos que precederam o cristianismo. Hoje, eles continuam a afluir em busca das águas curativas do "Poço dos Fortes”, na cripta onde a estátua original da Madona, destruída no século XVI, fora entronizada. Segundo as lendas, esse santuário, dedicado à Deusa-Mãe, tão freqüentemente reverenciada em um poço ou fonte, foi considerado sagrado pelos druidas muito antes de os cristãos o adotarem. Sancionado pela Igreja de Roma, o culto de Nossa Senhora e do feminino (incluindo misticismo, curas e trans­formação) floresceu na escola medieval em Chartres, que se tornou um importante centro de conhecimentos, lugar de um culto a "Maria-Sofia”, Deusa da Sabedoria.
A catedral atual, construída entre 1194 e 1220 sobre a gruta sagrada onde estava a estátua, é um monumento gótico à doutrina do perfeito equilíbrio e da harmonia. Louis Charpentier, um literato místico que estudou profundamente a Catedral de Chartres, acredita que os cavaleiros templários tenham sido os responsáveis por seu projeto e edificação, assim como por outras construções erguidas na França entre 1130 e 1250. A Ordem dos Cavaleiros Templários criou uma ampla rede de empreendimentos, incluindo edificações e fazendas, que impulsionou a economia das cidades francesas, promovendo uma grande prosperidade na região. Como o próprio nome indica, seu trabalho mais importante era a construção de monastérios, igrejas e catedrais. Acredito que essa atividade tenha sido a principal forma encontrada por eles para restau­rar o princípio feminino na sociedade medieval.
Os Construtores dos Templos
Já foi sugerido que os cavaleiros templários tinham acesso à sabedoria esotérica do mundo clássico, provavelmente preservada em fontes islâmicas que os membros da ordem encontraram no Oriente Médio. O seu conhecimento de matemática e engenharia deu origem ao estilo gótico de arquitetura, que se disseminou por toda a Europa, quase da noite para o dia, como se cumprisse um planejamento, no período de 1130 a 1250. O delicado equilíbrio entre reentrâncias e ressaltos e a harmonia na utilização das pedras nessas catedrais, muitas das quais dedicadas a Nossa Senhora, revelam conhecimentos de geometria e de tecnologia de construção bastante superiores aos que haviam sido empregados anteriormente na Europa.
Parece existir uma forte ligação entre os cavaleiros templários e o desenvolvimento das confrarias e associações maçônicas que edificaram as catedrais góticas da Europa. Esses cavaleiros planejavam e financiavam os templos, e várias corporações e associações de construtores eram formadas para erigi-los. Acredita-se que esses grupos tenham registrado os dogmas de sua fé no interior das edi­ficações por meio da linguagem da matemática e da simbologia. O mais importante desses dogmas era o princípio cósmico da harmonia entre as energias masculina e feminina.
Muitos dos segredos dos templários ainda deverão ser descobertos com a análise das medidas e dos detalhes de suas edificações. As corporações que construíram Chartres e outras catedrais francesas desse período chamavam a si mesmas de "Filhos de Salomão”, uma referência clara ao filho do rei Davi, que ergueu o primeiro templo judaico de Jerusalém. Mas o nome tem associações mais profundas. Salomão era também conhecido por sua sabedoria, e é a ele que se atribui a autoria do Cântico dos Cânticos, a canção de amor do hieros gamos do mundo antigo. O Livro da Sabedoria também afirma que Salomão buscou a Sabedoria como sua noiva. Assim, o nome da associação de construtores que erigiu a catedral nos remete à tradição de sabedoria do judaísmo antigo. E sua atividade era a construção de templos que restaurariam o princípio feminino no mundo medieval.
As impiedosas campanhas da Inquisição contra a heresia albigense e as importantes famílias de Provença, muitas das quais eram tem­plárias, rapidamente sufocaram o florescimento do feminino e de seus ramos na arte e na ciência. Louis Charpentier, em The Mysteries of Chartres Cathedral (Os mistérios da Catedral de Chartres), observa que o espírito que inspirou as autênticas catedrais góticas desapareceu misteriosamente após 1250, embora cópias gritantes e bem ­feitas desse estilo continuassem a ser erguidas.
Talvez possamos explicar essa enigmática fuga do Espírito. O ano de 1250 corresponde ao crescimento do poder dos inquisidores, à tomada de Provença e à destruição da fortaleza cátara de Montségur. Não é de admirar que o Espírito tenha partido! As tentativas posteriores de resgatar o feminino sofreram uma repressão severa; e místicos, artistas e cientistas da Igreja herética foram forçados a buscar seus interesses dissimuladamente. Disciplinas como medicina, alquimia, astrologia e psicologia, que antes floresciam, viram-se obrigadas a se esconder, condenadas como "ocultas".
Mas muitos monumentos dos séculos XII e XIII ainda dão o seu testemunho da iluminada mentalidade de seus arquitetos e construtores. Um livro de Fred Gettings discute um dos exemplos mais fascinantes da geometria "oculta': encontrado na Igreja de São Miniato, construída em 1207, em Florença, na Itália. Essa igreja possui um mosaico zodiacal no chão de mármore e uma inscrição codificada que, segundo o autor, mostra que a edificação foi intencionalmente orientada em direção à rara stellium, uma conjunção dos planetas Mercúrio, Vênus e Saturno no signo de Touro, que ocorreu no fim de maio de 1207. O fato de ter sido possível representar esse alinhamento com tanta acuidade indica que a sabedoria secreta dos antigos estava à disposição do projetista de São Miniato. Além disso, esse alinhamento revela que a prática da astrologia era importante na Europa medieval.
A astrologia era uma das artes ensinadas na escola de Chartres nos séculos XII e XIII. O estudo da astronomia permitia que as pessoas cultas contemplassem as leis do universo e o grande desenho do Geômetra Divino, o Criador. A moldagem de "mapas de fundação" para as catedrais da Europa Ocidental foi uma tentativa de alinhar as estruturas e os planos para a cidade de Deus na Terra com a ordem eterna do cosmo, refletida nos movimentos dos planetas. A geometria sagrada, criada para refletir a ordem dos corpos celestes, era uma arte, uma ciência antiga, praticada abertamente na arquitetura dos templos durante vários séculos antes que a Inquisição a forçasse a se transformar em uma prática oculta.
A fé dos templários celebrava o equilíbrio cósmico dos opostos, incorporando-o à construção das catedrais. Os magníficos vitrais com rosas são outro exemplo do feminino ressurgente entre os que desenhavam as igrejas medievais para honrar a Notre-Dame. Além disso, os ciganos dessa época acreditavam que as catedrais góticas do Norte da França haviam sido intencionalmente posicionadas para formar uma imagem espelhada da constelação de Virgem ­Nossa Senhora - traçada no chão.
Embora a veneração da Noiva de Jesus tivesse sido oficialmente suprimida pela Igreja Católica, santuários dedicados à Virgem Maria continuaram a surgir, atraindo peregrinos de toda a Europa. O culto do feminino atingiu o apogeu ao nomear Maria a Rainha Virgem do Paraíso. Contudo, se por um lado a Virgem Maria representa de maneira adequada o aspecto maternal do feminino, a doutrina de sua virgindade perpétua nega, implicitamente, o aspecto de esposa. Por mais bela que seja essa mãe, fica claro que uma pessoa muito real e preciosa está faltando na história cristã. Essa pessoa é a Noiva.
O Templo da Noiva
O fascinante livro The Holy Place (O Lugar Sagrado), publicado em 1991 por Henry Lincoln, descreve a prática da geometria sagra­da pelos templários medievais. O autor relata que, no berço da heresia - a área que cerca Rennes-Le-Château, em Provença -, existem cinco montanhas que formam uma estrela de cinco pontas perfeita, além de uma sexta montanha, localizada exatamente no centro dessa estrela. Segundo Lincoln, os habitantes da região consideravam tal formação um templo natural da Deusa do Amor. A configuração desse templo geográfico estimulou os proprietários de terras e a nobreza locais a construírem fortificações e capelas seguindo um alinhamento que forma perfeitas estrelas de cinco e seis pontas no chão. Isso pode ser constatado quando se desenham em um mapa as edificações ainda existentes, bem como as ruínas, exatamente o que Lincoln fez. Esse livro fornece impressionantes evidências da prática da geometria sagrada na região, no culto de sua Domina, a Madalena.
Quando o Vaticano e o rei francês Filipe IV resolveram acabar com a secreta Ordem dos Cavaleiros Templários, em 1307, os poucos que conseguiram escapar se mantiveram incógnitos. Um grande números deles reapareceu, tempos depois, na Escócia.
Quatro séculos mais tarde, muitas das doutrinas dessa ordem renasceram na fraternidade secreta dos maçons. Há numerosos fósseis da verdade que ligam os modernos maçons aos templários. Esse material é tão relevante na busca pela Noiva Perdida de Jesus que merece um exame mais cuidadoso.
A Maçonaria e os Templários
A moderna maçonaria baseia-se firmemente no simbolismo do templo que Salomão ergueu no Monte Sião, no século X a.C. Essa construção foi erigida com a ajuda de Hirão de Tiro, o artesão que criou as duas colunas gêmeas, os cálices sagrados e outras ornamentações registradas em 1 Reis 7:13-50. Hirão era o protótipo do alquimista medieval. Tais alquimistas eram conhecidos como "trabalhadores do metal”. Seja qual for a ligação entre eles, os cavaleiros do Templo, o ofício da construção e o desenvolvimento posterior da maçonaria "especulativa”, o fato é que todos partilhavam os mitos e segredos ligados à restauração do equilíbrio e o plano de reconstruir o Templo aniquilado.
A corporação dos maçons que construiu Chartres e outras ca­tedrais góticas se autodenomina "Filhos de Salomão”, como vimos anteriormente. Outro epíteto similar, "filhos da viúva': tem presença importante nos rituais da maçonaria moderna, fornecendo um dos fósseis que ligam os maçons modernos à heresia do Graal. Parsifal, o herói da poesia sobre o Graal, de autoria de Wolfram von Eschenbach, é chamado de "filho da senhora viúva”. Além de fazer alusão à desolada "Viúva Sião" no Livro das Lamentações, esse epíteto é encontrado como uma referência à linhagem real judaica do rei Davi. Na ascendência desse soberano, há Rute, a viúva moabita que acompanhou sua sogra à Judéia e, mais tarde, casou­-se com um parente de Naomi, Boaz. O rei Davi era seu bisneto.
É interessante observar que os devotos da deusa mediterrânea Ísis também eram denominados "filhos da viúva" em antigas referências. Já falamos sobre a associação artística entre Maria Madalena e Ísis, a "Deusa do Paraíso na Terra", que chorou sobre o corpo mutilado de Osíris e concebeu um filho dele.
Aqueles que sabiam sobre o Sangraal parecem ter estendido o epíteto "filhos da viúva" a todos os descendentes da viúva de Jesus - que, por sua vez, era uma "muda" ou descendente de Davi. O mito da supremacia e do status da casa de Davi floresceu entre as famílias dos templários.
Hirão de Tiro e as Colunas Gêmeas
Hirão, o mestre arquiteto do Templo de Salomão, é também outro "filho da viúva" (1 Reis 7:13). Sua figura bíblica é importante no ritual da maçonaria, que, nos seus mitos fundamentais e nos seus ritos de iniciação do terceiro grau, o chama de Hirão Abiff. Hirão de Tiro, o filho da viúva, construiu as duas colunas de metal do Templo, denominadas Jaquim ("estabelecido"), à direita, e Boaz ("força"), à esquerda (1 Reis 7:21). Em hebraico, que é lido da direita para a esquerda, o significado das colunas é "estabelecido em força”. Em razão do seu simbolismo, ambas tornam-se muito importantes em nossa discussão sobre a viúva de Jesus e a vinha da linhagem davídi­ca. Elas sempre reaparecem e são encontradas entre as marcas-d'água dos hereges, que discutiremos no próximo capítulo.
No ritual maçônico, o mito fundamental de Hirão é uma referência, sutilmente disfarçada, a outro mestre da arquitetura, que foi morto de maneira abominável e cujos planos para o Templo ou foram roubados ou perdidos. É necessário observar que o Novo Testamento grego não chama Jesus de carpinteiro, mas de tekton (Marcos 6:3). Um tekton era um engenheiro construtor, alguém capaz de planejar e construir uma casa, uma ponte ou um barco, assim como móveis.17 Por associação, referências ao "mestre construtor" Hirão são menções a Jesus, que possuía o "plano mestre" para a Cidade de Deus, o qual desapareceu após a sua morte, quando a mensagem foi conspurcada. Talvez a palavra tekton tenha sido mal interpretada, traduzida precariamente como "carpinteiro" e, depois, empregada literalmente em referência a Jesus - e não figurativamente, como deveria ter sido. Talvez a intenção fosse que se . tornasse uma alusão simbólica a ele como o mestre construtor e arquiteto do Novo Pacto.
A Senhora Matronit
A construção da catedral em homenagem a Nossa Senhora por associações de construtores da Europa medieval pode ser vista como paralela às tentativas dos cabalistas judeus da Espanha do século XIII de restaurar o contraponto feminino de Yahweh em seus próprios mitos. Chamada de Shekinah e Matronit, ela era a consorte de Yahweh na mitologia dos cabalistas e ficara perdida desde a destruição do Templo em Jerusalém, em 70 a.C. Segundo esse mito, como a câmara nupcial de sua união conjugal não mais existia, Yahweh deveria reinar sozinho no arco do paraíso, separado de sua amada contraparte. Matronit, agora sem lar, permaneceu perambulando no exílio como seu povo, os judeus da Diáspora. Parece que muitos teólogos e filósofos da Idade Média tinham consciência da necessidade de devolver ao menosprezado mito feminino o paradigma celestial para restabelecer o equilíbrio da sociedade. Eles empregaram o principio esotérico: "Assim na Terra como no céu."
O Inválido Rei Pescador
O mito judaico da Idade Média de Yahweh e Matronit ecoa o tema das lendas do Graal: o rei está incapaz sem sua consorte. É a perda da contraparte feminina do deus que causa a ferida que nunca cicatriza, e o infértil deserto reflete os ferimentos de Deus.
Nas lendas não se encontra a afirmação de que o Graal perdido é a Noiva. Mas a identidade do Rei Pescador da lenda de Parsifal, de Wolfram von Eschenbach, é bastante óbvia: o rei ferido chama-se Anfortas, uma corruptela de in fortis, que significa "em força" ­nome latino da coluna esquerda do Templo de Jerusalém, denomi­nada Boaz, em hebraico. Esse nome, que é o mesmo do ancestral do rei Davi, é uma referência óbvia às promessas feitas à linhagem davídica - a dos príncipes da tribo de Judá - de que os seus do­mínios seriam estabelecidos para sempre "em força”, uma vez que Judá era o mais forte dos 12 filhos de Jacó, o patriarca de Israel. O nome Anfortas está, dessa maneira, associado à coluna esquerda quebrada do Templo de Jerusalém, que é um símbolo da ruptura na sucessão de Davi.
Na história, o Rei Pescador Anfortas - ou seja, o davídico Rei Pescador Jesus - só poderá ser curado quando o Graal for reabili­tado, e isso acontecerá somente quando as perguntas certas forem feitas. A perda da contraparte feminina é a causa das feridas do rei, mas a história foi mal interpretada pelos que ouviram a lenda posteriormente, entendendo que o Graal era um artefato quando, na realidade, ele era a Noiva repudiada e perdida.
CAPÍTULO V
As Relíquias da Igreja Secreta
A secreta Igreja do Graal conseguiu manter viva, por vários séculos, a outra versão do cristianismo. Foram os adeptos dessa heresia que compreenderam a natureza dos ferimentos do Rei e que acreditaram que somente a restituição de sua esposa ao paradigma celestial e à história poderia curar a terra infértil. Penso que agora é o momento de examinarmos alguns lugares onde a heresia do Graal e a Igreja secreta, enganando os longos braços do inquisidor, conseguiram florescer nas artes - pin­tura, escultura e literatura - da Europa Ocidental.
The Lost Language oi Symbolism (A linguagem perdida do sim­bolismo), de Harold Bayley, publicado em 1912, é um trabalho em dois volumes, que utiliza a lingüística e a mitologia para explicar símbolos e emblemas descobertos em marcas-d'água (desenhos translúcidos impressos em folhas de papel) dos antigos fabricantes de papel de Provença.l O trabalho monumental de Bayley contém uma ampla variedade de referências sobre mitologia comparada, folclore e Escrituras. São mais de 1.400 desenhos de marcas-d'água que ele e seu predecessor, Charles-Molse Briquet, descobriram em Bíblias dos séculos XIII a XVIII. As mais antigas datam de 1282.
A heresia também inseria essas marcas simbólicas no papel que utilizava para imprimir a literatura popular. Assim, fósseis da here­sia estão nesses indeléveis desenhos - uma engenhosa maneira que os fabricantes de papel encontraram de esconder suas crenças em símbolos, para protegê-las da Inquisição. Dessa forma, preservaram em segredo os emblemas de sua fé durante vários séculos.
Acredito que Bayley tenha se enganado ao interpretar a heresia contida nessas marcas-d'água como algo puramente místico. Em muitos casos, os emblemas são políticos e doutrinários, e a heresia à qual muitos deles se referem é a do Santo Graal. As marcas-d'água de sua pesquisa tornam mais clara a fé dos hereges, que parecem ter acreditado que Jesus era um recipiente terreno do espírito de Deus e que os ensinamentos dele os conduziriam à iluminação e à trans­formação pessoais. Para muitos, Jesus era casado e o seu sangue ainda corria nas veias de certas famílias provençais. Algumas mar­cas-d'água eram místicas, referindo-se aos novos caminhos que levariam à santidade e à purificação pessoais e ao serviço ao próxi­mo, delineados nos Evangelhos. Entretanto, até esses ensinamentos eram heréticos porque iam além das liturgias e dos sacramentos da Igreja oficial. Outras marcas-d'água eram heréticas porque indi­cavam a crença em um Jesus casado, herdeiro real de Davi.
Um dos emblemas predominantes na produção dos fabricantes de papel parece ter sido o unicórnio. Segundo Bayley, mais de 1.100 marcas-d'água por ele encontradas retratavam esse mítico ani­mal de um único chifre. O uso intencional desse símbolo de Cristo, o Noivo arquetípico, é tão importante no folclore medieval que vou discuti-lo mais profundamente no próximo capítulo. Por um moti­vo que o toma muito relevante para a nossa história, o unicórnio era um dos temas favoritos na Europa medieval.
Há também numerosas marcas-d'água que retratam um leão. Esse animal aparece de formas bastante variadas, mas os místicos, ou hereges, o interpretavam como o Leão de Judá, que é men­cionado pela primeira vez na Bíblia hebraica em Gênesis 49:8-10 (NVI): "Judá, a ti te louvarão teus irmãos... diante de ti se pros­trarão os filhos de teu pai. Judá é um leãozinho... O Cetro não se arredará de Judá..”
Em 1 Crônicas 5:2 há a afirmação de que o príncipe de Israel viria da tribo de Judá, pois ele era o mais forte dos 12 filhos de Jacó. O rei Davi, filho mais novo de Jessé, era descendente de Judá por proceder de Boaz e Rute, e Jesus foi aclamado o "Filho de Davi" em sua entrada triunfal em Jerusalém quando o povo gritava "Hosana!" e espalhava folhas de palma diante dele. Está claramente afirmado em Apocalipse 5:5 que o Cordeiro que fora morto e que depois se senta à direita de Deus Todo-Poderoso é o "Leão da tribo de Judá”. É esse o leão representado nas marcas-d'água de Provença: o próprio Jesus.
Em uma das marcas-d'água copiadas por Bayley, o leão tem uma romã na ponta final da cauda. Em outra, a barba do ani­mal parece um cacho de uvas. Com suas sementes ver­melhas, a romã era o símbolo da fertilidade feminina nas religiões antigas. No Cântico dos Cânticos, o jardim da Noiva e do Noivo é descrito como um pomar de romãs. E o cacho de uvas é uma clara alusão ao fruto e às sementes da Videira. Essa é uma metáfora para a herança de Israel nas Escrituras judaicas: "Pois a videira do Senhor é a casa de Israel, e os homens de Judá são a planta das suas delícias" (Isaías 5:7).
Em alguns casos, a flor-de-lis aparece brotando da cabeça do leão. Essa íris de três pontas é o símbolo utilizado para identificar o rei merovíngio Clóvis 1(466-511 d.C.) e a legítima linhagem real da França. Assim, um leão representado com uma flor-de-lis brotando de sua cabeça ou formando um tufo na ponta de sua cauda é, cer­tamente, uma referência política à linhagem real proclamada a dos reis de Israel e da França - a linhagem dos príncipes de Judá.
Outras marcas-d'água mostram um recipiente - que Bayley chamou de "o Graal" - geralmente apresentado com um cacho de uvas ou várias flores-de-lis brotando dele. Um desses recipientes exibe as iniciais MM, de Maria Madalena, ou talvez Maria Maior; em outro, aparece o MR, de Maria Regina. Esses dois epítetos podem ser facilmente empregados tanto a Madalena quanto à Virgem Mãe, embora, em geral, as pes­soas suponham que sejam uma alusão a esta última. A referência desses símbolos é ao "recipiente”, ou portador, por meio do qual a linhagem real de Israel e de Judá teria continuidade. Em outros desenhos, uma flor-de-lis está nascendo de um vaso. Alguns emblemas também mostram cachos de uvas que incluem as letras IC (de Iesu Christi, em latim) e a flor-de-lis merovíngia.
Outro símbolo significativo encontrado nas marcas-d'água é a figura do urso, o animal que, no folclore, era associado aos merovíngios. Ele é o forte que ficou hibernando por muito tempo e que se espera que acorde em breve. O nome e a lenda do rei Artur estão profundamente associados ao urso merovíngio. Nos contos de fadas, esse animal aparece na história Branca de Neve e a rosa vermelha: enfeitiçado por um anão malvado, ele precisa encon­trar um meio de quebrar o encantamento e retomar sua antiga forma, a de um belo príncipe.
Algumas vezes, o urso na marca-d'água tem uma cruz de luz, o sinal da verdadeira iluminação, ou as letras LUX acima de suas costas. O hieróglifo com a cruz de seis pontas é comum em muitas marcas-d'água. A palavra lux - termo latino para "luz" - tinha especial importância para os hereges albigenses, cuja doutrina fundamental era a iluminação, ou a verdade. Quando é escrita com as letras gregas 1\, V e X, a palavra inteira pode ser abreviada apenas com a letra X, que passou a designar "verdade”. O símbolo da letra X era considerado sagrado por ser o sinal- men­cionado nas traduções em latim de Ezequiel 9:4 - com o qual a testa dos espiritualmente iluminados (aqueles que ficaram de luto por Je­rusalém) deveria ser marcada. Era usado para distinguir os iniciados no monastério do Mar Morto, em Qumran. Mais tarde, a prática foi adotada pelos cristãos com o "sinal-da-cruz" nos ritos batismais. Acredito que essa marca, o X, seja um símbolo de identificação da heresia do Graal e da Igreja secreta relacionado a Hermes e que ele tenha sido copiado pela tradição esotérica na arte da Europa.
Ocasionalmente, o urso na marca-d'água aparece com uma trombeta ou um chifre. O chifre é o símbolo da pregação herética. Como o mítico chifre do herói épico francês na Canção de Rolando: o seu sopro tem o poder de quebrar as pedras. Com respeito à cristandade, a "pedra" que as pregações heréticas destroem é a "Pedra de Pedro”, as rígidas e sólidas doutri­nas da Igreja institucional. Em alguns folclores, o chifre tem o poder mágico de "fazer o deserto florir”.
No conto de fadas europeu João e o pé de feijão, é mencionado um chifre de ouro que pode quebrar o encantamento e destruir o infame ogro que mantém o castelo e todas as pessoas sob o seu domínio. A narrativa revela que, quando o chifre for finalmente so­prado, todos serão livres e a terra florescerá. Isso nos traz à me­mória os muros de Jericó, que caíram quando as trombetas foram sopradas. Aos olhos dos hereges de Provença, a Inquisição da Igreja Católica Romana era o ogro ditador. Cuidadosamente, eles escon­deram as doutrinas de sua fé dos espiões que se infiltravam por toda parte.
Outro símbolo encontrado entre as marcas-d'água heréticas é a Cruz de Lorena. Foi a Godofredo de Lorena que se con­cedeu a coroa de Jerusalém após a primeira Cruzada, depois que os cavaleiros da Europa cristã conseguiram vencer os sarracenos que haviam tomado a Cidade Santa. Como mostramos no capítulo ante­rior, acreditava-se que Godofredo era descendente dos reis merovín­gios, que chamavam a si mesmos de "a Videira" - a linhagem que seria ligada a Jesus. Um dos objetivos da primeira Cruzada parece ter sido o de instalar um filho dessa descendência no trono de Jerusalém, para que as promessas descritas em Isaías 11 pudessem finalmente ser cumpridas. A política da época parecia refletir a crença de que, se a linhagem de Davi fosse reconduzida ao trono de Israel, o profetiza­do milênio do reino de Deus poderia iniciar-se.
Após a derrota dos sarracenos em 1099, Jerusalém foi governa­da, durante algum tempo, pela casa de Lorena. Godofredo logo ficou doente e morreu. Seu irmão, Baudoin I, aceitou então o títu­lo de rei de Jerusalém. A Cidade Santa foi mais tarde retomada pelos sarracenos e, nos séculos subseqüentes, novas Cruzadas ten­taram recuperá-la. Entretanto, as esperanças milenares dos hereges não morreram. Mais esforços foram feitos para colocar filhos da nobre casa de Lorena em outros tronos da Europa. A família real aparentada dos Habsburgos-Lorena era famosa por suas alianças por meio do casamento. A palavra do Senhor à sua "muda", ou ao seu herdeiro do rei Davi, era: "Não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito" (Zacarias 4:6). Um sábio epíteto é ligado à casa austríaca dos Habsburgos- Lorena: "Os outros fazem a guerra; você, alegre Áustria, casa-se!" Parece que a idéia do aprimoramento dinástico por meio do matrimônio já era antiga nessa família tão diretamente associada ao Sangraal.
A Cruz de Lorena é desenhada com duas barras transversais, em vez de apenas uma. A barra menor, no topo, representa o rolo com a inscrição INRI, que significa "Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”. Segundo os Evangelhos, essa frase foi inscrita, a mando de Pilatos, acima da cabeça de Jesus enquanto ele sofria na cruz (Marcos 15:26, João 19:19), como um testemunho do dogma fundamental da Igreja secreta de que Jesus era o rei legítimo da linhagem de Davi.
Durante séculos, a Cruz de Lorena tem sido usada como um grito de liberdade na França. Uma das marcas-d'água de Bayley mostra um globo representando a Terra, encimado pela cruz de duas barras. É curioso que a mesma cruz tenha sido usada pela Resistência Francesa para estimular seus compatriotas a atos de sabotagem durante a ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Hoje também está presente na carteira de sócio dos maçons, embora nesses casos a cruz seja inclinada, formando duas letras X, uma atrás da outra. Esse emblema comprova uma antiga ligação entre a maçonaria moderna e os dogmas da heresia do Graal, que foi repetidamente citada pelos autores de O Santo Graal e a linhagem sagrada. O símbolo inclinado parece ser um enunciado codificado: "A verdadeira iluminação descansa sobre a Casa de Lorena, nos dogmas da heresia do Graal."
A Lâmina e o Cálice
Bayley acredita que o hieróglifo A que representa a sigla AVM significa ''Ave Millennium" ou "Venha o Teu Reino". O M também pode ser uma alusão a "Maria". Os ortodoxos vêem isso como o sinal de ''Ave Maria" e acreditam que se refira à Virgem Maria. O significado implícito do símbolo é que as promessas milenares só poderão ser cumpridas quando o 1\ e o V forem unidos em harmonia. O 1\ é o símbolo arquetípico masculino, a "lâmina"; e o V, seu oposto igual, é o arquétipo do feminino, o "cálice': A harmonia no paraíso, assim restaurada, seria refletida nos relacionamentos na Terra.
Atualmente, temos o paradigma do perpétuo filho solteiro e da mãe virgem como o nosso ideal de santidade. Um resultado pos­sível dessa combinação é a desvalorização, por vários séculos, das relações conjugais entre parceiros de carne e osso. No entanto, o modelo de Deus para a santidade, como muitos poetas e místicos já registraram, é o relacionamento do Noivo e da Noiva. Devemos notar que esse símbolo é repetido no emblema da moderna ma­çonaria - o compasso e o esquadro entrelaçados -, A que já foi liga­do à esperança medieval de um milênio de paz.
A letra M é importante em muitas das marcas-d'água heréticas. Acabamos de observar que ela se forma quando um V é adicionado ao símbolo da lâmina para formar o hieróglifo de Ave Millennium, ou Ave Maria. Freqüentemente, aparece com uma flor-de-lis par­tindo de seu centro. Outros desenhos que mostram múltiplas letras M são torres e castelos. Essas são possíveis referências a Magdal-eder, a torre da fortaleza da filha de Sião (Miquéias 4:8-9). Bayley também descobriu um grande nú­mero de elaboradas coroas retratando o M, e uma delas inclui um G, de Gésu ("Jesus" em francês), e um chifre que repre­senta a pregação herética que abala a "rocha". O G tam­bém aparece no centro do compasso e do esquadro entrelaçados ­- o símbolo da maçonaria - e hoje se acredita que ele se refira à palavra "geometria", e não a Gésu. Um emblema contém a cruz da LUX e a flor-de-lis da linhagem real, com as iniciais IC, para Iesu Christi.
Muitas das marcas-d'água apresentam várias ocorrências da letra M para Maria Madalena, para as ondas do mar - mare, em latim - e para Miriam, "mar salgado" ou "Senhora do Mar”, em hebraico. O significado das ondas é a dissolução das formas. Como sabemos, a água pode vir em violentas torrentes destrutivas de chuvas e enchentes, assim como em rios plácidos. Cada pequenina onda tem a capacidade de causar a erosão e, finalmente, a destruição.
Acredito que a doutrina herética do casamento de Jesus, como as ondas formadas pelas iniciais MM (de Maria Madalena), esteja liga­da ao signo de Aquário. Como se acredita que esse signo simboliza a dissolução das formas, suspeito de que os hereges esperavam que sua doutrina relativa ao casamento de Jesus e Maria Madalena acabasse provocando uma erosão no monólito da Igreja oficial. Então, ela poderia abrir o caminho para um mito iluminado e auspicioso, segundo o qual a Terra seria compreendida como uma parceira de Deus, o recipiente sagrado que contém a divindade.
Essa idéia faz sentido ainda hoje. A restituição da Noiva, ou do princípio feminino, de forma visível ao paradigma do cristianismo possibilitaria a cura da cisão entre o espírito e a matéria que pre­valece atualmente, recuperando, ao mesmo tempo, as psiques femi­nina e masculina. Jesus renascido não ficaria mais separado de sua Noiva. Os hereges parecem ter acreditado que o resgate da esposa de Jesus curaria a terra infértil e faria com que o deserto florescesse, um tema que se repete em várias lendas do Graal.
As doutrinas dos hereges, como as da Igreja de Roma, apoiavam um mito que fornecia a estrutura que sustentava suas crenças. Como o mito cristão, a heresia do Graal estava enraizada nas pro­messas e profecias da Bíblia hebraica. Os hereges tomaram as promessas das Escrituras para a dinastia de Davi tão literalmente quanto o povo judeu havia feito - em especial os puristas e os zelotes dos tempos do ministério de Jesus em Israel. Os adeptos dessa heresia provavelmente acreditavam que um governante da casa real de Davi um dia seria reconduzido ao trono de Israel, reinando sobre o mundo inteiro com paz e justiça.
Nesse aspecto, suas crenças ecoavam como as do judaísmo. A diferença era que, para muitos hereges da Idade Média, o "gover­nante justo" profetizado por Isaías seria um descendente da casa de Davi e também de Jesus. Ele viria da "Videira de Maria”, os merovín­gios. Para eles, a Igreja Católica Romana não era, como declarava, a personificação da cidade de Deus na Terra, a "Nova Israel”, herdeira das promessas dos profetas hebreus. Eles acreditavam que muitas das doutrinas oficiais eram falsas; assim, apegaram-se com tenacidade à sua própria versão do mito da promessa. Provavelmente até espe­raram que "o ramo da raiz de Jessé" (Isaías 11: 1) acabasse produzin­do um segundo Messias/Rei para governar o mundo.
Os Vínculos com a Alquimia Medieval
Os símbolos dos hereges medievais do Graal provavelmente também estão ligados aos dogmas da alquimia, encontrados nos escritos dos antigos mestres espirituais. A afirmada busca dos alquimistas por um método que transformasse chumbo em ouro por meio de pro­cessos químicos e de metalurgia tem sido totalmente mal interpreta­da. Na verdade, nesses textos, os símbolos que designavam os metais usados eram uma deliberada "cortina': ou fachada, desenvolvida para enganar os não-iniciados. O sistema parecia referir-se à metalurgia e, dessa forma, muitos aspirantes a cientistas, bem como pessoas que buscavam ouro, tomaram as palavras e os símbolos ao pé da letra e trancaram-se em laboratórios improvisados, o que pode ter dado origem à química moderna.
Entretanto, o objetivo mais oculto e profundo dos primeiros mestres da alquimia não era químico - era teológico, filosófico e psicológico. Seus escritos revelam a preocupação com a transfor­mação mística de uma pessoa "natural" em um ser espiritualmente iluminado. A pessoa natural era chamada de "chumbo” e o ser espiritualmente transformado, de "ouro': Assim como o ouro é tes­tado no fogo, o espírito humano era purificado nas provas da vida. Os guias para a transformação espiritual eram as Escrituras e cer­tas iniciações esotéricas que forneciam o conhecimento. O agente de tal sabedoria era o Espírito Santo. Como esse sistema desconsi­derava o papel da Igreja estabelecida e ensinava doutrinas místicas da perfeição do homem por meio do amor e do saber, ele passou a ser classificado de herético. Como conseqüência, os alquimistas ­perseguidos pela Inquisição - foram cuidadosos ao ocultar a sua fé sob enigmáticos símbolos de metalurgia.
É muito significativo que Hirão de Tiro, o "filho da viúva" con­tratado para construir o Templo de Salomão em Jerusalém (1 Reis 7:13), tenha sido um artífice do metal, ou seja, um alquimista. No mundo antigo, o conhecimento dos metais e de suas propriedades e ligas era um privilégio secreto da casa real - um sinônimo de riqueza e poder. Na verdade, o refino do ouro era o mais valioso dos segredos de Estado. Da mesma maneira, as fórmulas de preparação de ligas mais fortes para fabricar armas e metais mais reluzentes para decoração, que não ficassem manchados, eram segredos cuidadosamente guardados. Hirão de Tiro, o paradigma do alqui­mista, e Tubal Cain, "fabricante de todo instrumento cortante de cobre e de ferro" (Gênesis 5:22), são fósseis que formam os elos de uma corrente que inclui os alquimistas medievais, os maçons mo­dernos e os remanescentes da linhagem davídica que se intitulavam os "filhos da viúva".
A Tradição Hermética
Outra pista que nos leva a essa associação entre os alquimistas medievais e a maçonaria moderna é encontrada no próprio nome Hirão. Ele apresenta uma identificação lingüística com o grego Hermes (Mercúrio, no Mediterrâneo; Tot, para os egípcios), que era o mensageiro dos deuses e guardião das estradas e encruzilhadas, O X. Esse "deus das polaridades" é freqüentemente retratado com os pés alados e o caduceu (emblema da proclamação dos deuses) e sobressai nos escritos dos alquimistas. Como o elemento mercúrio - que em inglês é chamado, sugestivamente, de quicksilver ("prata ligeira") -, ele é esquivo e está sempre mudando de forma. Hermes é conhecido como trapaceiro ou brincalhão porque gover­na o princípio da sincronia, em que "significativas coincidências" proporcionam conhecimento instantâneo. Ele parece ser uma ponte que liga a mente à matéria. Os alquimistas compreendem esse princípio como um veículo de transformação, e Hermes é celebra­do como aquele que porta a luz.
Seria preciso um segundo volume para esclarecer a importância de Hermes na tradição da sabedoria. Hirão de Tiro, o artífice de metais e mestre arquiteto do Templo de Salomão (cujas colunas, romãs, trabalhos com lírios, redes e recipientes são descritos em 1 Reis), foi adotado como o protótipo do alquimista iluminado, cujo guia é Hermes. O mito básico dos rosa-cruzes inclui a história do "Três Vezes Grande”, Hermes Trismegisto, um alquimista legendário de Alexandria que costuma ser retratado com três lanças represen­tando os três bastões da sabedoria. Os iniciados que seguiam seus ensinamentos eram, em geral, conhecidos como "os herméticos”.
Agora voltemos a outro fóssil enigmático da heresia do Graal, preservado na cultura européia. Descobri que há muitas pistas da heresia secreta na arte e na literatura da Europa Ocidental da Idade das Trevas e que elas são ainda mais numerosas no período que se seguiu à primeira Cruzada (1099 d.C.). Referências ocultas à here­sia do Graal, encontradas em vários trabalhos antigamente consi­derados misteriosos e que foram erroneamente interpretadas, merecem uma análise mais profunda.
As Cartas do Tarô
Um artefato medieval ligado por seus símbolos à heresia da Noiva Perdida é o tarô, que deu origem ao nosso baralho moderno. O lugar em que teria surgido é obscuro, e especulações a esse respeito vão da índia ao Egito. Embora essas cartas já fossem uma realidade em 1392, acredita-se que o baralho mais antigo ainda existente tenha sido criado por um pintor do século XV, possivel­mente Andréa Mantegna (1432-1506). Os quatro naipes e 22 trun­fos do baralho desse período compartilham símbolos que contêm a heresia do Graal, sobretudo o baralho de Carlos VI, ou baralho de Gringonneur, que parece ter uma íntima ligação com a tradição secreta. Em 1450, pregando contra as cartas por considerá-las uma invenção do diabo, um frade franciscano foi particularmente rigo­roso ao condená-las, chamando-as de "degraus em uma escada que conduz ao inferno”.
Quando as autoridades da Igreja Católica condenaram as cartas do tarô, classificando-as de heréticas, e não de imorais ou deca­dentes, devem ter tido total consciência de seu conteúdo. Acredito que os trompes ("trunfos" ou "trombetas") do tarô de Carlos VI formam um catecismo ilustrado da heresia medieval do Graal. Tais cartas poderiam ser datadas de meados do século XV, com base nas vestimentas das figuras representadas. O halo estilizado que envolve as figuras femininas, usado nas cartas A Justiça, A Força e A Prudência, foi popularizado um século antes pelo pintor toscano Giotto (1267-1337). Sua origem tem sido ligada a datas diversas, mas o que realmente importa é a pureza de seus símbolos - o artista sabia exatamente o que desejava transmitir e os empregou de maneira consciente, com a intenção de registrar os dogmas da heresia do Graal. Infelizmente, seis dos trunfos do baralho de Carlos VI foram perdidos ou, provavelmente, eliminados.
Do Sul da França, a heresia do Graal avançou de corte em corte, por toda a Europa. Não estou sugerindo que os adeptos de todas as seitas heréticas desse continente conhecessem seus dogmas (embo­ra seja possível que muitos, de fato, estivessem a par dela), mas em Provença a heresia do Graal e a heresia cátara existiram lado a lado e se sobrepuseram: muitas famílias aristocráticas que eram ligadas à linhagem do Graal eram também cátaras. Como vimos, a Inquisição e a Cruzada Albigense, que devastaram Provença destruindo castelos e cidades inteiras, foram impiedosas em suas tentativas de exterminar a heresia e as famílias que a adotaram.
Quando Montségur - o último baluarte dos cátaros - caiu em 1244, a heresia tomou-se clandestina. Alguns antigos hereges, por necessidade, começaram a professar a fé oficial, embora apenas exteriormente. Era a única tática de sobrevivência possível. A heresia da Videira - a sobrevivência de Israel - tivera suas raízes arran­cadas. Ou assim parecia. Em 1307, porém, seus elementos ainda floresciam sob os ritos secretos dos cavaleiros templários. Quando o Vaticano tomou consciência de que seu inimigo de longa data estava à espreita sob a cruz vermelha desses cavaleiros, tentou aniquilar a ordem inteira por decreto, acusando seus adeptos de heresia e torturando-os para obter informações sobre o seu tesouro.
Um século depois, as cartas do tarô circulavam por cortes da Europa, levadas por bandos de ciganos, bufões, malabaristas e acro­batas (os jongleurs), de cidade em cidade. Elas acabaram sendo usadas em mesas de jogo em praticamente todos os cantos da Europa. Os artistas viajantes começaram onde os trovadores haviam parado, e seus símbolos ainda persistem nos baralhos modernos.
O significado das cartas do tarô tem sido motivo de debates há muitos anos, e numerosas revisões e interpretações vinculam-no ostensivamente à alquimia, às sociedades secretas dos maçons e rosa-cruzes e às ciências ocultas em geral. Embora o significado de muitas cartas tenha sido declarado obscuro, elas ainda conservam uma aura de perigo. A Igreja condenou o tarô como herético quando ele apareceu pela primeira vez na Europa, porém ninguém con­seguiu determinar com certeza que heresia se escondia em seus símbolos. O conhecimento da heresia do Graal surge para esclare­cer esse enigma.
Um baralho de tarô é composto pelos Arcanos Menores – que consistem em quatro naipes chamados espadas, ou gládios; copas, ou taças; ouros, ou estrelas de cinco pontas; e paus, ou bastões - e pelos Arcanos Maiores (os Segredos Maiores), ou trunfos. Os baralhos modernos não possuem mais os trunfos, que foram os mais cruel­mente condenados pela Igreja, embora o "truque" do trunfo seja um estratagema ainda presente em muitos jogos de cartas atuais.
A única relíquia dos 22 trunfos originais encontrada nos bara­lhos modernos, e que é significativa para a nossa história, é o curinga - o palhaço, ou bobo, remanescente dos "palhaços de Deus”, aos quais se atribuiu a ação de terem espalhado os dogmas da heresia albigense. Essa figura aparece com freqüência nas marcas-d'água. O curinga é um "louco por Cristo" (1 Coríntios 4:10): "Nós somos loucos por causa do amor de Cristo... padecemos fome e sede; estamos nus e recebemos bofe­tadas e não temos pousada certa. Somos perseguidos e suporta­mos." As ligações com os hereges perseguidos por buscarem a ver­dade são claras. E, mesmo hoje, o curinga vence. Ele parece possuir um poder oculto e irrevogável. Sua figura, por associação, também é ligada a Hermes/Mercúrio, o mensageiro dos deuses, freqüente­mente chamado de trapaceiro dada a sua astúcia.
Acredita-se que os ciganos foram os criadores das cartas, mas, na minha opinião, eles apenas as adaptaram para fazer adivinhações, assim como outras pessoas fizeram o mesmo para usá-las em jogos. O simbolismo interno dos baralhos mais antigos deixou-me con­vencida de que sua fonte foi a heresia albigense do Graal. Acredito que os integrantes das trupes nômades dos ciganos e artistas que acompanhavam os trovadores ficaram sabendo do tarô por inter­médio dos pregadores albigenses que viajavam com eles e lhes ensinavam as doutrinas da fé "oculta”. Até hoje, todos os anos, os ciganos correm para as ruas de Les-Saintes-Maries-de-La-Mer no mês de maio para honrar Sara, a Egípcia, como sua Rainha Negra.
A Trombeta
A palavra trompe, no francês antigo, significa "trombeta': o mesmo símbolo das pregações heréticas que cindiram a Rocha da Igreja de Pedro e que era encontrado nas marcas-d'água. Nos ba­ralhos originais, eram esses trunfos que ilustravam as verdadeiras doutrinas e a história da Igreja oculta do Graal. Nenhuma autori­dade no assunto parece saber com exatidão por que os trunfos do tarô foram considerados subversivos, em parte porque o significa­do original dos símbolos foi obscurecido por copistas posteriores. Somente os pintores dos baralhos primitivos poderiam dizer com certeza o que eles mesmos estavam expressando. Trabalhos subse­qüentes, executados por artistas que desconheciam o real significa­do das imagens, muitas vezes não passavam de adivinhações aci­dentais ou meras especulações sobre a intenção dos verdadeiros criadores das cartas. Com o passar do tempo, muitas dessas pin­turas foram deturpadas e mal interpretadas. As lendas do Graal difundiram-se em várias direções, fazendo com que a sua história básica fosse se modificando aos poucos até que o tema verdadeiro se perdesse totalmente.
Apenas os baralhos mais antigos ainda existentes, entre eles o de Carlos VI, mantêm um simbolismo original suficiente para identi­ficar a heresia oculta nos trunfos. Por isso, vamos recorrer às cartas desse baralho para decifrar os símbolos. Vejamos o que os desenhos de seus trunfos podem nos dizer sobre o Sangraal.
A primeira carta é O Tolo, ou "O Homem Comum". Na termi­nologia do Graal, esse é Parsifal, o investigador não iniciado. Para iniciar-se nos segredos, ele precisa fazer as perguntas certas. Esse tema do homem comum que deve formular questionamentos é repetido nos rituais de iniciação da maçonaria.
Essa carta é seguida pelo curinga, que ainda faz parte dos bara­lhos modernos. O curinga conhece todos os segredos. Ele é um pro­fessor da tradição hermética. Essas duas cartas e as duas seguintes desapareceram do tarô de Carlos VI, mas suas imagens podem ser determinadas por analogia com as de baralhos posteriores.
A próxima carta da seqüência é A Papisa. Já mencionei que, na Igreja herética, as mulheres tinham posição e nível similares aos dos homens. Muitas eram consideradas descendentes de Jesus - um dos dogmas de sua fé. Elas chamavam a si mesmas de "Videiras", referindo-se à noiva real de Judá, "a planta das delícias de Deus" (Isaías 5:7). Além disso, seguiam o versículo de João 14 - "Eu sou a videira, vocês são os ramos" - e de Sirac 24: "Eu floresço como a videira".
Em O Santo Graal e a linhagem sagrada, é dito que um grupo de elite foi cuidadosamente selecionado para receber a incumbência de passar o segredo adiante, de geração em geração. Acredita-se que essa sociedade secreta, denominada Priorado de Sião, tenha sido formada por Godofredo de Lorena para proteger os interesses da linhagem. Seu líder, ou "grão-mestre”, era eleito pelos compa­nheiros para um mandato que duraria toda a sua vida e era sem­pre chamado de Jean ou Jeanne ("João" ou "Joana") após a eleição. A oculta Igreja do Amor era considerada paralela e igual (embora em oposição!) à Igreja de Roma.
Quatro mulheres já ocuparam o cargo de grão-mestre do Priorado de Sião, formando um paralelo com o Papa da Igreja de Roma. O terceiro trunfo retrata a Papisa Joana. A Igreja que ela repre­senta é a da Videira, os descendentes da outra Maria, a Madalena, sua matriarca real. Essa Igreja honra o princípio "sentada à esquer­da de Deus" - o feminino. É, definitivamente, antiestablishment. Não é de admirar que a carta tenha sido eliminada!
A carta seguinte, A Imperatriz, também se perdeu. Baralhos pos­teriores a retrataram a figura de uma mulher carregando um escudo no qual se via uma fênix, mas não se sabe se esse símbolo também estava no tarô de Carlos VI. Ela era, claramente, o "oposto/igual" ao Imperador, que é mostrado na carta posterior segu­rando um globo e um cetro. Após O Imperador há a carta chamada O Papa, personagem que aparece sentado entre dois cardeais com mantos vermelhos. O Papa no baralho de Carlos VI porta uma chave, remetendo-nos às chaves do reino que, segundo os Evangelhos, foram entregues a Pedro. Provavelmente, a papisa da carta perdida carregava a outra chave.
Em seguida, temos Os Amantes (ou Os Enamorados em bara­lhos posteriores), carta em que dois cupidos são retratados com fitas sobre os torsos, formando a letra X em vermelho (gravura 3). Eles apontam flechas para uma procissão de casais vestidos com magnificência, de acordo com a última moda da época - os nobres da Europa dançam em uma procissão através da história. Essa carta representa a linhagem da heresia movendo-se em pares pela cena européia. Os dançarinos estão batendo palmas e cantando, outra associação sutil com o "fruto da Videira”. São famílias da linhagem carregando o Sangraal, o Sangue Real, no transcorrer dos séculos.
A mulher no centro do desenho exibe na cabeça um grande e ela­borado enfeite azul, com o formato da letra M - de Maria? Ou, talvez, de merovíngio? O símbolo não é acidental. O verdadeiro nome dessa carta é ''A Videira".
Quando trocamos a seqüência habitual das cartas O Cocheiro e O Eremita, a ordem cronológica dos trunfos fica mais clara. Sugiro que a próxima carta seja a denominada O Eremita, um homem com uma capa e uma longa barba. O eremita que aparece no ba­ralho de Carlos VI é Pedro, o Eremita, cuja zelosa pre­gação da primeira Cruzada no fim do século XI, na Europa Ocidental, culminou com a retomada da Cidade Santa e de seus santuários. Significativamente, ele está segurando uma ampulheta nesse baralho, uma referência explícita à questão de que havia chegado a hora de libertar Jerusalém dos sarracenos e reconstruir o Templo Sagrado. A primeira Cruzada (1098-99) aconteceu no final do primeiro milênio, após a destruição do Templo, data que prova­velmente tinha um profundo significado para os hereges, cujo grito de guerra era "Ave Millennium': A grande formação rochosa dese­nhada ao lado direito do eremita é outro detalhe que confirma essa interpretação, pois o nome Pedro, como qualquer criança cristã sabe, significa "pedra”.
Por serem substantivos femininos abstratos, as virtudes foram personificadas por meio das mulheres nesse tarô. Retratada na próxima carta está A Força, uma mulher segurando uma coluna quebrada. Esse pilar é outra das chaves que revelam o significado das cartas do tarô, pois é uma representação da coluna esquerda do Templo de Salomão, com seu "trabalho de lírios" no alto. Como vimos, essa é a coluna denominada Boaz (Força) nas Escrituras Hebraicas (1 Reis 7:21), associada ao Leão da tribo de Judá e à sucessão real davídica. Boaz, o marido da viúva Rute, era o bisavô do rei Davi.
A supremacia dos descendentes de Judá é descrita na Bíblia hebraica: "Mas da raça de Judá, que era o mais forte entre os irmãos, vieram os príncipes" (1 Coríntios 5:2). Boaz era da tribo de Judá, e sua linha direta de descendentes passou por Obed, Jessé, Davi e Salomão. E, segundo as Escrituras do Novo Testamento grego, culminou, mil anos depois, com Jesus. Boaz, a coluna esquerda quebrada do Templo, é uma referência a essa linhagem de legítimos reis davídicos, agora também rompida. Graficamente, esse significado adquire uma confirmação ainda mais evidente na carta A Força do tarô de Mantegna, na qual a mulher que segura a coluna quebrada exibe dois leões em suas roupas, e um terceiro leão aparece ao seu lado: um para Judá, um para Boaz e um para Jesus ­o "Três Vezes Forte»! O desenho de um Graal aparece entalhado no topo da coluna. Uma frase ainda usada nos rituais maçons é parte do mito da Palavra Perdida do Mestre Criador: até que ela seja encon­trada em uma era futura, "existe uma força no Leão de Judá, e ele prevalecerá”. A Força representa a linhagem do Leão de Judá e as promessas feitas aos herdeiros de Davi (Salmos 89, 2 Samuel 7:16).
A seguir há a carta O Cocheiro, que nos baralhos modernos é chamada de O Carro. Contudo, o homem que conduz o veículo no baralho de Carlos VI não é um cocheiro, mas um cavaleiro. Ele veste uma armadura e retoma vitorioso, segurando na mão direita uma acha (arma antiga com o formato de um machado), enquan­to se equilibra sobre o carro, no qual estão despojos de guerra. Esse veículo lembra um ataúde - ou um tabernáculo. Um dos pés do homem descansa sobre um enfeite que forma a letra I. A curvatura do enfeite ao lado o faz formar a letra C. As letras IC são as iniciais de Iesu Christi. Esse trunfo mostra que os despojos de guerra trazidos de Jerusalém estão de alguma forma associados a Jesus. A carta representa o retorno dos templários que, segundo rumores, haviam levado de volta à Palestina um grande tesouro após a primeira Cruzada. A cerimônia do ritual maçônico do Arco Real ressalta que arquivos secretos foram encontrados em esca­vações realizadas sob o Templo de Salomão por "residentes temporários» de Jerusalém. Assim sendo, o famoso tesouro do Templo pode estar ligado a informações descobertas em suas ruínas.
A décima carta, que também desapareceu do tarô de Carlos VI, mas que integra outros baralhos, é A Roda da Fortuna. Acredito que ela se refira especificamente à mudança abrupta no destino da Ordem dos Cavaleiros Templários. Durante dois séculos, essa ordem acumulou grande fortuna e poder político; porém, em 1307, o rei Filipe IV, da França, colaborou com o Papa Clemente V para exterminá-la. No dia 13 de outubro desse ano, uma sexta-feira, um edital determinando a prisão dos templários foi publicado simul­taneamente em todas as cidades da França e por toda a Europa. Nesse dia de mau agouro, A Roda da Fortuna mudou radicalmente e se voltou contra esses poderosos cavaleiros, a quem o destino já fora tão favorável.
A Justiça é a virtude feminina retratada na carta seguinte. A mulher segura a balança da justiça e a espada de dois gumes. Os templários foram levados a julgamento, acusados de heresia. Durante sete anos, a lnquisição os interrogou com imensa brutalidade, numa tentativa de descobrir o esconderijo de seu famoso tesouro.
A próxima carta da seqüência, geralmente chamada O Enforcado (ou O Pendurado em versões modernas) e considerada a mais enig­mática do baralho, poderia ser denominada "O Templário Tortu­rado". A perna pela qual o homem está pendurado é um eufemismo metafórico, usado desde a Antiguidade na literatura e na arte, para referir-se aos órgãos genitais. É, ao mesmo tempo, uma sutil referência à linhagem sagrada e a Anfortas, o rei inválido do Graal. As sacolas de dinheiro nas mãos do homem representam o legendário tesouro do Templo. Apesar das terríveis torturas aplicadas pelos inquisidores, os líderes templários não revelaram a localização do tesouro escondido, talvez porque a sua verdadeira riqueza não fosse feita de ouro. Ela estava guardada em recipientes terrenos - a linhagem real de Jesus, o Rei, e a outra versão da história cristã que eles mantinham em seus corações.
O trunfo denominado A Morte é a carta seguinte. Estranhamente, porém, os corpos pisoteados pelos cascos do bár­baro jumento são os de um rei e os de figuras representadas em uma carta anterior: O Papa e os cardeais de mantos vermelhos. Esta é outra pista importante para a correta interpretação do tarô como um catecismo albigense: em março de 1314, Jacques de Molay, grão-mestre dos templários, profetizara, pouco antes de morrer queimado em uma estaca, que o rei Filipe IV da França e o papa Clemente V iriam encontrá-lo no banco dos réus, diante de Deus, ainda naquele ano. A profecia se concretizou: ambos morreram antes do fim daquele ano. Essa carta retrata a morte da elite gover­nante repressora, da ímpia aliança dos poderes que se uniam para destruir a verdade do Graal e seus protetores.
Acredita-se que a carta seguinte represente uma virtude: A Prudência. A figura feminina está sentada, paciente­mente, derramando água de um jarro para outro. O significado esotérico dessa carta é que os dogmas supostamente exterminados estão sendo transferidos, por motivo de segurança e com muito cuidado, para outro recipiente. A água é o símbolo cristão do espírito e da verdade, os dogmas da "única fé verdadeira”. Eles não se perderam.
O Diabo, a próxima carta na seqüência, é uma representação licenciosa do poder do princípio masculino reinante na Europa após a dissolução do Templo e do aniquilamento dos albigenses. As figuras em torno de um terrível ogro estão removendo pedras do caminho. Essa criatura é uma representação visual do "tirano" da Idade Média, a Inquisição, que foi instituída para arrancar a heresia pela raiz, mas que acabou sendo usada para re­primir todo tipo de pensamento livre. O monstro segura pesadas correntes com as quais escraviza a raça humana. Suas horríveis e enormes orelhas provavelmente representam os espiões da Inquisição que estavam por toda parte, intimidando e oprimindo o povo. Não são os hereges da Videira que servem a esse monstro da maldade - seus escravos são os ortodoxos.
A carta denominada A Torre retrata a destruição da torre de uma fortaleza, que foi chamada de A Casa de Deus em alguns baralhos posteriores. É uma obsedante referência a Magdal­eder, a "fortaleza" da filha de Sião no exílio. Ela parece simbolizar a destruição da Cidade de Deus, que foi a esperança e o sonho
milenares dos hereges. Em um mundo que nega e reprime a ver­dade, ela não pode ficar de pé.
A carta seguinte desapareceu do baralho de Carlos VI, mas foi denominada A Estrela em versões posteriores. Em alguns desses baralhos, uma moça aparece derramando no chão a água contida em dois vasos, um sinal de esperança para a futura regeneração do espírito e da verdade. Em uma carta anterior, a virtude da prudên­cia aparecia transferindo a água para um novo recipiente. A Estrela também pode ser uma referência ao signo astrológico de Aquário, o Aguadeiro, a Nova Era cujo símbolo profetiza a dissolução da elite patriarcal dominante por meio da "água" do feminino (mare, que significa "mar") e do espírito da verdade. A água derramada nessa carta fará o deserto florescer nos séculos que virão.
Na próxima carta, A Lua, há uma lua crescente no céu e dois ho­mens que trabalham anotando cálculos em um pergaminho. Esse corpo celeste é um importante símbolo para as ciências ocultas e para a deusa. Os homens parecem estar calculando dimen­sões celestiais, uma ilustração gráfica da crença esotérica de que a realidade na Terra espelha a ordem do cosmo. Essas medidas deter­minarão as dimensões do Templo terreno. O arquiteto do verdadeiro Templo é parte do mito original da maçonaria, cujos rituais incluem Hirão Abiff e um clamor: "Não haverá ajuda para os filhos da viúva?" O tema recorrente da construção do verdadeiro Templo, de acordo com os princípios cósmicos da harmonia e do equilíbrio das forças, ainda permeia as doutrinas da irmandade dos maçons.
Os homens na carta estão usando as formas A e V , as mesmas do compasso e do esquadro entrelaçados que se tomaram símbo­los da maçonaria. Colocadas juntas, elas formam o ideograma IA , o Ave Millennium, encontrado nas marcas-d'água dos albigenses. A exagerada lua crescente simboliza o oculto - especificamente as ciências medievais da alquimia e astrologia. Há muitos sinais de que ambas estavam ligadas à construção das catedrais medievais. Pode-se até especular que os dois homens que aparecem nessa carta estejam estabelecendo uma base astrológica para uma catedral, tentando alinhá-la com sinais auspiciosos das estrelas e do cosmo, como fi­zeram os construtores da Igreja de São Miniato. Essa prática foi copiada de outra similar, usada pelos projetistas e arquitetos árabes na Idade Média.
A carta O Sol retrata uma moça à luz do dia, com um bilro nas mãos. Seu cabelo está solto e ela segura uma linha, um símbolo da continuidade. Ela é a Bela Adormecida, que espetou o dedo em um fuso, caiu em sono profundo e só despertou quando um príncipe atravessou a floresta de espinhos para resgatá-la e livrá-la do feitiço. Colocando essa carta ao lado das duas anteriores, A Estrela e A Lua, vemos que a água do espírito e da verdade, que havia sido derramada, transformou-se em dois rios cujas águas car­regam os dogmas da heresia. Um deles, as ciências ocultas e as tradições secretas de certas sociedades, corre sob a escuridão (A Lua). O outro rio, a lenda popular, carrega o segredo à luz do dia. Essa carta avisa ao investigador de que é nessas fontes que ele deve procurar as pistas para a verdade.
A seguir, temos O Julgamento. Dois anjos aparecem tocando trombetas (mais uma vez, as trombetas!), e as pessoas na parte inferior do desenho estão se levantando de seus túmulos. O significado dessa carta não é o do último Julgamento, conduzido pelo Rei Celestial, parte do dogma da Igreja Romana. O tema é "Des­perte!”. O Julgamento retrata o dia da iluminação, quando todos os povos acordarão para a sua responsabilidade pessoal e o seu destino comunal como o Filho de Deus, cujo nome, Emanuel, significa "Deus esteja conosco!”. Nas doutrinas da heresia, a promessa é para o "toque da alvorada" e não para o "toque de silêncio”. Essas trombe­tas, assim como as cartas do tarô, anunciam o Novo Dia.
A última carta, O Mundo, é a concretização dessa promessa. O governante justo, com uma coroa, um globo e um cetro, domina toda a Terra, que aparece circundada pelo ciclo mís­tico da perfeição. O reino de Deus tornou-se real.
Os Naipes das Cartas do Tarô
Os naipes do tarô contêm um simbolismo do Graal que confirma a interpretação dos 22 trunfos. O naipe de espadas era, original­mente, representado por uma pequena espada, a "lâmina" masculi­na. Praticamente todos os túmulos dos templários eram marcados com espadas. No simbolismo original das cartas, o naipe de copas era um cálice. Ele também simbolizava o Graal e a Igreja alternativa, que tinha, entre outros, o epíteto de Igreja do Amor. Posteriormente, muitos corações apareceram nas marcas-d'água albigenses, e esses dois temas - cálice e coração - ficaram associados.
O naipe de ouros era originalmente chamado de "pentáculo”, o nome de uma estrela de cinco pontas que é o símbolo do homem nas ciências ocultas. Segundo o livro de The Holy Place (O lugar sagrado), de Henry Lincoln, essa estrela possuía um significado especial para os cavaleiros templários e para a Igreja alternativa. Era um símbolo dedi­cado a Vênus, pois a órbita do planeta que recebeu o nome da Deusa do Amor formava, a cada oito dias, um perfeito pentáculo em relação ao So1. Esse desenho está refletido no chão por meio dos cinco picos das montanhas que traçam um pentagrama no coração da heresia albigense. Lincoln sugere que eles foram incorporados pelos cava­leiros como um templo natural dedicado a Maria, a Madalena.
Nas versões mais primitivas do tarô, o naipe de paus, talvez o mais significativo de todos, aparecia como um cajado, ou uma vara, em flor - um cetro. Esse símbolo é a imagem visual do "cajado florido da raiz de Jessé” a promessa messiânica descrita em Isaías 11:1, e é repetido no uso do "Cetro" que se refere ao Messias davídi­co no Pergaminho da Guerra, encontrado entre os Pergaminhos do Mar Morto, nas cavernas de Qumran. O trevo de três folhas dos baralhos modernos é uma clara menção à linhagem real dos reis de Israel e ao seu mandato divino. Estilizados em nossos baralhos modernos, os emblemas originais dos quatro naipes eram símbolos bem definidos e propositais da heresia do Graal.
Nessa análise, é preciso lembrar que uma das maiores con­tribuições dos albigenses foi exatamente a sua insistência em fazer com que as Escrituras fossem traduzidas para o seu idioma. A seita manteve-se infiltrada nos versículos das Bíblias hebraica e grega. Mensagens que podem parecer obscuras para nós eram o alimento diário dos hereges. Essa paixão pelo acesso direto à palavra escrita de Deus representou um dos mais expressivos legados dos albi­genses à civilização ocidental. Ao disseminarem o Evangelho, os hereges de Provença plantaram sementes de liberdade, justiça e igualdade. Essas sementes se tornaram mais importantes do que o culto da linhagem, culminando, enfim, no surgimento da demo­cracia no século XVIII.
Revisões posteriores das pinturas e dos símbolos das cartas do tarô acabaram obscurecendo seus significados originais. Tentei reconstruí-los com base nos trunfos ainda existentes de um dos mais antigos baralhos de tarô. À luz da heresia e de suas ligações com os cavaleiros templários, os símbolos são facilmente colocados em uma seqüência cronológica. Por meio desse catecismo de­senhado, os dogmas básicos e a história da heresia atravessaram toda a Europa. A origem e o significado do tarô são, até hoje, um quebra-cabeça que perturba os historiadores da arte, mas somente porque eles não reconheceram suas ligações com a Noiva Perdida e sua íntima associação com a heresia albigense do Graal.
CAPITULO VI
Os artistas hereges e seus símbolos
As cartas do tarô representam apenas um dos mistérios da arte européia que podem ser esclarecidos pelos dogmas da heresia do Graal. Existem outros, numerosos demais para serem mencionados. Neste capítulo, vou analisar apenas alguns dos pintores que, durante vários séculos, foram considerados ortodo­xos, mas cujas pinturas apresentam um conteúdo simbólico que as vincula, de maneira incontestável, à tradição secreta ou especifica­mente à própria heresia.
Duas importantes doutrinas da Igreja alternativa eram a promessa da restauração da monarquia davídica e o compromisso milenar de se estabelecer um mundo em harmonia com Deus. Essa Igreja também pregava o conhecimento e a transformação pessoal por meio da ação do Espírito Santo. Os hereges não acreditavam simplesmente em um credo - eles viviam uma vida de encontro pessoal com Deus. Muitos artistas e esotéricos eram seus aliados, em oposição à hegemonia da Igreja oficial sobre o pensamento europeu. E, nessa aliança, passaram a partilhar os segredos. Eles compreendiam que a negação e a repressão do feminino haviam deformado a sociedade, privando-a de sua alegria e independência. O trabalho desses intelectuais, que se ligavam uns aos outros por intermédio de uma rede que ultrapassava as fronteiras nacionais, uniu-se na tentativa de devolver a Mulher, o feminino esquecido, à consciência dessa sociedade.
Há vários séculos, os estudiosos da arte reconheceram o fato de que os mestres medievais usavam símbolos em seus trabalhos. Admitiram, também, que tudo o que aparecia em suas obras fora inserido ali, cuidadosamente, com o objetivo de enviar uma mensagem. A única controvérsia refere-se à verdadeira intenção do artista. É claro que a Igreja de Roma fez a sua própria interpretação desses símbolos, mas a heresia do Graal e seus dogmas podem nos ajudar a entender algumas dessas pinturas de forma diferente.
As pinturas de Botticelli
Durante muitos anos, os historiadores da arte tentaram explicar as últimas pinturas de Sandro Filipepi. Conhecido em todo o mundo como Botticelli, esse pintor renascentista nasceu em 1445 e morreu em 1510, em Florença, a cidade da família Médici, famosa por sua contribuição ao renascimento das artes e letras no século XV.
Os trabalhos do jovem Sandro, que entrou para a oficina de artes de Fra Fillipo Lippi em 1464, parecem bastante ortodoxos. Entre­tanto, o seu quadro Madona de Bardi (ou A Virgem com o Menino e dois santos) que se acredita ter sido pintado em 1485, é quase inex­plicável, assim como outras obras que ele produziu nessa época e em períodos posteriores. Alguns críticos atribuem essa mudança a uma experiência "mística" religiosa, embora ela não tenha sido documentada. Outros simplesmente consideram os últimos traba­lhos de Botticel1i "enigmáticos”. Há ainda os que vêem neles uma forte influência do dedicado monge Savonarola, que fez uma pregação de ódio a Florença em um sermão de 1490.
Mas essa data é muito tardia para explicar o mistério. Iniciado mais ou menos em 1483, o simbolismo empregado por Botticelli começou a adquirir um caráter diferente daquele de suas primeiras pinturas. Recentemente, foi levantada a hipótese de que, de 1483 até à sua morte, em 1510, ele foi grão-mestre do Priorado de Sião. Essa talvez seja a chave do mistério em torno de seus últimos trabalhos, uma vez que as doutrinas da heresia do Graal podem proporcionar um conhecimento lógico das enigmáticas obras que, como muitos acreditam, ele produziu depois de 1483.
Já me referi à importância da letra X, que transmitia aos hereges o significado da "verdadeira iluminação”. Evidências presentes em outras pinturas dão a idéia de que esse símbolo era usado consciente­mente para indicar o conhecimento da tradição hermética, ou eso­térica. Existem muitas ocorrências da letra X vermelha nos trabalhos de Botticelli, todas elas pintadas a partir de 1483, ano em que ele teria se tornado grão-mestre do Priorado de Sião.
A Madona do livro foi pintada em 1483. Quase no centro exato da pintura há um X vermelho, no corpete do vestido da Madona. O Menino Jesus está segurando três pequenas lanças de ouro. Elas poderiam representar os pregos que o fariam sofrer na cruz, mas é mais provável que sejam símbolos esotéricos dos três bastões da iluminação, um tema popular entre os alquimistas medievais e os rosa-cruzes. Em outro trabalho, Madona da romã ou A Virgem com o Menino e seis anjos, a versão que Botticelli pintou depois de 1483 mostra o anjo à esquerda usando fitas vermelhas atravessadas no peito. Em uma versão anterior do mesmo tema, A Virgem com o Menino e oito anjos, provavelmente de 1477, nenhum anjo traz fitas vermelhas cruzadas. Na versão pos­terior, Botticelli parece ter virado o anjo da esquerda (o lado feminino!) de frente para o espectador e, assim, pôde pintar, inten­cionalmente, um X vermelho cruzando o seu peito, tendo plena consciência de seu significado esotérico.
Outro estranho elemento encontrado em trabalhos atribuídos a Botticelli após o ano de 1483 é a romã. Em muitas obras - a Madona do Magnificat, a Madona da romã e suas variantes -, o Menino Jesus está segurando uma romã parcialmente aberta, um antigo símbolo da fertilidade física e sexual por causa de sua grande quantidade de sementes vermelhas. (As conotações eróticas da romã também estão presentes no Cântico dos Cânticos, no trecho em que os amantes se encontram em um pomar repleto dessa fruta.) Intérpretes posteriores, acreditando que Botticelli fosse um devoto fer­voroso da Igreja Católica, sustentaram que a romã era o símbolo da vida eterna. Entretanto, uma imagem vale mais do que mil palavras. A posição da fruta no colo do Menino Jesus em várias dessas pinturas deixa claro que Botticelli acreditava na fertilidade física de Jesus.
A Madona de Bardi retrata a Virgem e o Menino com São João Batista à esquerda e São João Evangelista à direita. Ao fundo se vê um local coberto de ciprestes, oliveiras e folhas de palmeira. Vasos de rosas vermelhas e brancas e de galhos de oliveira em flor apare­cem em pedestais. Entrelaçadas entre os galhos estão fitas com referências escritas extraídas de Sirac 24:14-17: "Estou exaltado como o cedro no Líbano, como o cipreste no Monte Sião, como a palmeira em Cades, como um botão de rosa em Jericó, como uma oliveira no campo... espalho os meus galhos como um terebinto... eu floresço como a videira."
Saber que os descendentes de Jesus chamavam a si mesmos de "Videiras" é de grande ajuda para a interpretação dessa pintura sob uma nova perspectiva. Ela dá a impressão de que a criança está prestes a cair do colo da mãe. Todas as figuras parecem distorcidas, principalmente a de João Batista, cuja expressão é de angústia enquanto aponta para o Menino Jesus. A fita que ele tem nas mãos diz: Ecce Agnus Dei ("Contemplem o Cordeiro de Deus"). Para os hereges, Jesus era o Cordeiro de Deus, que foi brutalmente assassinado pelos romanos, levado ao sacrifício conforme Isaías havia profetizado. Em Apocalipse 5, o Cordeiro é digno de louvor e honra, glória e riquezas, e senta-se à direita de Deus. De acordo com os hereges, porém, o Cordeiro não corresponde ao mesmo Deus invisível que se senta no trono, no paraíso. Adorar somente a Deus!
É fácil compreender a importância que João Batista tinha para os hereges. Em primeiro lugar, ele era parente próximo de Jesus: as Escrituras afirmam que sua mãe, Isabel, era prima de Maria, a mãe de Jesus. João, o Evangelista, é igualmente honrado pela Igreja secreta. Os cátaros usavam uma cópia de seu Evangelho amarrada na cintura, escondida sob as roupas, quando se dirigiam aos encontros secretos. Nesse Evangelho, João Batista saúda Jesus como o "Cordeiro de Deus" e o batiza no rio Jordão. Ali, acontece uma passagem descrita em João 3:29 na qual João Batista fornece expli­cações sobre o seu relacionamento com Jesus: ''Aquele que tem a noiva é o noivo; mas o amigo do noivo, que está presente e o ouve, regozija-se muito com a voz do noivo. Assim, pois, esta minha glória está completa”. Essa passagem não é uma mera analogia ­João Batista nomeia seu primo Jesus o Noivo de Israel.
Os maçons da era moderna, cuja irmandade secreta tem muitos elementos em comum com os cavaleiros templários e cujos rituais e símbolos refletem elementos da heresia, escolheram esses mesmos santos como patronos. Como mencionei, cada grão-mestre do Priorado de Sião assumia o nome de Jean (João) após ser eleito. Esses dois santos, João Batista e João Evangelista, têm uma impor­tância claramente especial para os seguidores da tradição esotérica e da Igreja alternativa.
Analisemos a pintura A crucificação mística, feita por Botticelli aproximadamente em 1500.A desolada figura de Maria Madalena agarra-se ao pé da cruz em que está Jesus. A di­reita, há um anjo que segura uma raposa pelo rabo, deixando-a de cabeça para baixo. Nuvens escuras estão sendo levadas para longe; da nuvem cinzenta que fica na parte de cima, do lado esquerdo, onde Deus Pai aparece abençoando a cena, anjos descem do céu, cada um deles com um escudo branco enfeitado com um X vermelho inclinado. É como se Botticelli se divertisse procurando novas formas de incluir o X vermelho em seus trabalhos!
Nessa pintura, parece que os anjos com as cruzes vermelhas estão dissipando a escuridão que envolve o relacionamento de Jesus e Maria Madalena. A raposa é um símbolo gnóstico da farsa reli­giosa. Histórias e imagens populares da Idade Média costumavam retratar uma raposa vestida com uma túnica de monge enganando e explorando as pessoas sorrateiramente. Para os gnósticos, os sa­cerdotes da Igreja Romana eram "raposas': Referências a esse ani­mal são encontradas na Escritura favorita dos hereges, o Cântico dos Cânticos, na qual as "pequenas raposas" estragam as videiras no vinhedo da Noiva (2:15). A raposa na pintura representa a mentira perpetuada pela Igreja oficial, que insistia no celibato de Jesus. Essa crença estava "estragando a videira" pela negação da legitimidade da linhagem. As cruzes vermelhas inclinadas que aparecem nos escudos dos anjos, reproduzindo o emblema dos cavaleiros tem­plários, denotam a proteção da verdadeira "Videira” pelo Priorado de Sião e seu braço armado, os cavaleiros templários. Interpretado dessa maneira, o quadro transforma-se em um reflexo dos dogmas da heresia do Graal, dos quais Botticelli foi o principal guardião na época em que essa obra-prima foi pintada.
Uma das mais eloqüentes obras de Botticelli é a Derelicta, pintada por volta de 1495. Muitos foram os críticos que tentaram adivinhar a identidade da mulher desconsolada, enco­lhida nos degraus diante de uma porta fechada, com fragmentos de seu manto cor-de-rosa espalhados ao seu redor. Ninguém parece ter reconhecido na Derelicta a Noiva do Cântico dos Cânticos, agredida pelos guardiões do muro que arrancaram o seu manto. Ela é o feminino desprezado e ferido, excluído da participação comple­ta na comunidade. Seu nome, em latim, quer dizer "abandonada”.
Além de Botticelli, há muitos outros pintores da Idade Média cujos trabalhos indicam um conhecimento da heresia do Graal. Na análise das pinturas religiosas desses artistas, é importante identificar os que usaram o simbolismo secreto em uma tentativa consciente de promover a heresia e os que simplesmente copiaram símbolos cujo significado eles mesmos não compreendiam muito bem.
Foram numerosas as pinturas de Nossa Senhora e do Menino Jesus feitas na Europa, no final da Idade Média, e elas fornecem um solo fértil para esta análise. O feminino era, claramente, um dos temas prediletos, tanto dos artistas ortodoxos quanto dos hereges. E muitas dessas obras ilustram uma linha de compreensão esotéri­ca ou herética de Cristo por meio do uso de símbolos herméticos. Alguns artistas considerados ortodoxos deixaram símbolos em seus trabalhos, camuflando suas filiações. Mais uma vez, a chave está no conhecimento dos significados das cores e dos símbolos.
As Pinturas de Fra Angélico
Os quadros de Fra Angélico sempre pareceram inteiramente ortodoxos. Entretanto, uma análise mais cuidadosa de muitos deles demonstra um uso consciente de símbolos esotéricos. Isso não deve nos causar surpresa se nos lembrarmos de que esse monge era um cidadão de Florença em meados do século XV, exatamente o perío­do em que a heresia mais se desenvolveu nessa cidade. Em uma das pinturas da Madona com o Menino Jesus, Maria está segurando duas rosas, uma vermelha e uma branca. Essas eram as cores da Noiva-Irmã - o vermelho representava a paixão; o branco, a pu­reza. Para os alquimistas, elas simbolizavam a união dos opostos. Na visão dos ortodoxos, a pureza e a paixão eram excludentes e antiéticas; porém, entre os hereges da Igreja secreta, ambas se uniam na Noiva-Irmã. Dessa maneira, vasos, cestos, ornamentos e coroas de rosas vermelhas e brancas são freqüentes nos quadros de Fra Angélico, Botticelli e outros herméticos.
Para expandir um pouco esta abordagem sobre o simbolismo das cores, vejamos um trabalho pintado por Piero della Francesca aproximadamente em 1466, que apresenta uma sólida figura de Madalena em um vestido verde, a cor da fertilidade (gravura 22). Por cima do vestido, ela usa um manto vermelho que está dobrado para trás, deixando aparecer o forro totalmente branco, que enfati­za sua pureza em contraste com a tradição que a considerava uma prostituta. É impossível não prestar atenção no forro branco da capa escarlate. As cores vermelha e rosa são, com freqüência, asso­ciadas a Maria Madalena nas pinturas medievais (em algumas pou­cas obras ela aparece vestida de verde). A Inquisição preocupava-se tanto com as imagens da Madona vestida de vermelho que, em 1649, o censor das artes acabou decretando que todas as pinturas da Virgem Maria deveriam retratá-la com roupas azuis e brancas, reconhecendo os aspectos de irmã e mãe do eterno feminino, mas negando o aspecto carnal e sexual do casamento. Quadros de Nossa Senhora vestindo vermelho eram proibidos, e "mulher de verme­lho" tornou-se sinônimo de mulher de rua.
As três cores juntas - vermelho, branco e azul- são muito fami­liares e suas origens são mais antigas do que os registros históricos. A Deusa Tripla, comum nas religiões da Antiguidade na Europa, na África e no Oriente Próximo antes das invasões indo-arianas, pos­suía três aspectos: donzela (irmã), noiva (esposa, gestante) e anciã (senhora idosa ou bruxa). As cores correspondentes a esses aspec­tos eram branco, vermelho e azul-escuro ou preto.5 Assim, a Deusa Tripla combinava os três aspectos em seu culto mundial do femini­no. Entretanto, no mito cristão articulado pela Igreja de Roma, o aspecto nupcial de "carne e osso" é tradicionalmente negado.
Talvez a obra mais significativa de Fra Angélico que parece conter uma referência oculta à heresia do Graal seja a pintura feita em uma
parede da primeira cela do Convento de São Marcos, em Florença (gravura 23). O famoso mural é chamado Noli Me Tangere (Não me toques). O título foi tirado do Evangelho de João 20:17. Jesus está em pé, no jardim murado, com uma enxada nos ombros, um símbolo que enfatiza o seu papel de lavrador, o "jardineiro" do quarto Evan­gelho. Ajoelhada aos pés dele, com os braços estendidos em sua di­reção, está Maria Madalena, em um vestido cor-de-rosa. Sob sua mão esquerda, sem chamar a atenção, perdidas em meio às flores, há três minúsculas letras X, pintadas em seqüência.
O X vermelho, símbolo secreto esotérico da Igreja herética, era uma representação da verdade que contrariava a Igreja oficial. Ele indicava a falha fundamental na doutrina cristã ortodoxa: a negação da esposa de Jesus. Os três xis abaixo da mão esquerda de Madalena referem-se às doutrinas secretas. Na pintura, a mão direita da mulher aponta diretamente para eles. Apesar disso, seria possível dizer que eles foram acidentais. Vários outros trabalhos de Fra Angelico apresentam flores vermelhas e brancas espalhadas pela grama, mas somente em Nali Me Tangere podemos ver três letras X pintadas em seqüência.
Se esses minúsculos símbolos aparecessem em outro lugar da pin­tura, poderiam ter sido acidentais. No entanto, o fato de estarem sob a mão esquerda de Maria Madalena, uma clara associação com o lado maternal, ou "flanco sinistro" da linhagem real, me faz acreditar que eles sejam um caso bastante claro de simbolismo consciente. Atualmente, o flanco sinistro tem o significado pejorativo de descen­dência ilegítima. Contudo, originalmente na heráldica da Idade Média, ele designava a linhagem da mãe do portador do escudo - o brasão de armas dela enfeitava o lado esquerdo da peça, enquanto os símbolos da família paterna eram inseridos do lado direito.
A importância militar do uso de escudos pintados para identi­ficar os comandantes nos campos de batalha era óbvia para os cruzados, que descobriram essa prática entre os sarracenos e a ado­taram a partir do século XII. O feminino era identificado com a mão esquerda, e o masculino, com a direita. Essa associação foi acolhida pela psicologia moderna, segundo a qual o hemisfério esquerdo do cérebro, que comanda o lado direito, é considerado "masculino" e "racional"; e o hemisfério direito, que comanda o lado esquerdo, é tido como "feminino" ou "artístico/intuitivo". Um é destro, o outro, sinistro. As mesmas analogias dualistas de "cabeça" e "coração" foram levadas para a arena política, na qual a "direita" é conservadora, e a "esquerda”, liberal.
Não deve ser surpresa para nenhum de nós que os pintores e estudiosos de Florença estivessem mergulhados nas tradições eso­téricas do culto secreto e sua heresia. Cosme de Médici estabeleceu nessa cidade a sua extensa biblioteca de obras dos clássicos gregos, latinos e árabes, em meados do século XV, apesar da influência repressora da Inquisição. Florença era um solo fértil para artistas e poetas sofisticados, e eles corriam para lá, por considerá-la um cen­tro de iluminação, um núcleo de conhecimentos. Os estudos de li­teratura clássica, alquimia e esoterismo floresceram naqueles círculos e disseminaram-se nos ambientes intelectuais de toda a Europa.
Outros Símbolos Suspeitos na Arte
Há uma obra pintada por um artista medieval não identificado, hoje exposta no museu do Louvre, que mostra Maria Madalena em uma posição conhecida como a pose de Astarté: ela segura os seios com as mãos em concha. Essa pose é vista com mais freqüência em estátuas da Deusa da Fertilidade do Oriente Médio, que é a mulher do Deus-Sol sacrificado. Não se pode negar que essa pintura seja pelo menos um pouco surpreendente!
Em outro quadro supostamente ortodoxo do século XVI, feito por um pintor alemão anônimo, Maria Madalena aparece com uma luva preta na mão esquerda. Essa é uma referência clara à linhagem mater­nal da "Viúva Sião”, cujos filhos eram negros e "não reconhecidos nas ruas" (Lamentações 4:8). Nessa obra, a palma da mão de Maria é ressaltada. As marcas-d'água de Provença faziam uso freqüente dessa parte do corpo como um importante símbolo (figura 13). Seu significado é "mantenha a fé, a promessa do Messias davídico!”.
A palmeira também é um símbolo importante de Israel e da casa do rei Davi. Ela se refere a passagens dos Evangelhos nas quais o povo espalhou folhas de palma diante de Jesus, aclamando-o o filho de Davi quando ele entrou em Jerusalém no lombo de um jumen­to. Em grego, o termo que designa palmeira é o que corresponde a fênix. Até esse jogo de palavras tem associações medievais com Jesus. A mítica ave "palmeira" renasceu de suas próprias cinzas e era um símbolo da ressurreição. As marcas-d'água de Bayley foram tiradas de Bíblias escritas em outras línguas européias além do francês, por isso a interpretação desses jogos de palavras também deve ser levada em consideração.
Outras obras que parecem conter usos conscientes do simbolis­mo esotérico são as do pintor italiano Carlo Crivelli (1430-1493). Várias de suas pinturas da Madona e do Menino Jesus mostram um muro rachado com uma mosca dentro. Acredito que a rachadura representa a defeituosa construção da doutrina ortodoxa, enquan­to a mosca sugere a corrupção. Acima da cabeça da Madona há uma penca de frutas que inclui um pepino verde. A referência nesse caso pode ser ao lamento do profeta hebreu Isaías pelo fato de a filha de Sião ter sido deixada "como a cabana no vinhedo, como a choupana no pepinal, como cidade sitiada" (Isaías 1:8). As marcas-­d'água de Bayley incluem abóboras e pepinos que ilustram o la­mento. Esse simbolismo se refere não à Igreja de orientação ortodoxa, mas à filha exilada de Sião, à Igreja secreta alternativa do Graal, à "cidade sitiada”. Essa pintura deve ter feito a Inquisição tremer.
Há também uma obra de Crivelli, pintada aproximadamente em 1473, que exibe a Madona e o Menino Jesus entronizados, com peixes gravados em ambos os lados do trono, uma referência à era de Peixes. Jesus era considerado pelos herméticos e alquimistas medievais o Senhor da era de Peixes do zodíaco astrológico, o por­tador do sinal do peixe.
Muitas pinturas medievais e renascentistas da natividade de Jesus mostram uma gruta, um pobre abrigo ou uma caverna em uma colina cercada de colunas partidas de edificações e de templos da era clássica. Essas obras ilustram o entendimento de que seu nascimento coincidiu com a dissolução de uma era anterior e o iní­cio de uma nova era. Em Mateus 2:2, os três Reis Magos relatam ter avistado a estrela do Menino quando ela surgiu ao leste. A palavra mago significa "homem sábio, sacerdote ou astrólogo': e a nova constelação que ascendia quando Jesus nasceu era a de Peixes. Um importante exemplo do tema da era que termina e da que nasce é encontrado no quadro de Botticelli denominado Adoração dos magos, no qual o abrigo provisório da cena da natividade é cercado pelas colunas partidas do Império Helênico.
Santa Maria Madalena, uma pintura finalizada em 1528 pelo mestre holandês Jan van Scorel, retrata Maria Madalena com um grande vaso, similar aos que representavam o Graal nas marcas­-d'água. Ela está sentada perto do tronco quebrado de uma gigan­tesca árvore, com um galho de folhas verdes acima da cabeça. A manga esquerda de seu vestido é decorada com fileiras de pérolas formando letras X. Em volta do pescoço há letras hebraicas bor­dadas, indicando a sua origem de nascimento. A pérola é, com fre­qüência, associada a Maria Madalena provavelmente porque a "pérola de grande valor", como o próprio Graal, é algo tão precioso que precisa ser procurado.
Outro pintor que associa a pérola a Maria Madalena é George de la Tour (1593-1652). Esse artista, que nasceu em Lunéville, Lorena, pintou seis diferentes versões da Madalena penitente. Em todas as obras, uma mulher está de blusa branca e saia verme­lha, as cores da Noiva-Irmã, símbolo da combinação de paixão e pureza. Ela está sentada em uma cadeira, contemplando vários itens: uma caveira, uma vela, um espelho ou uma grande pérola. A mulher aparece, invariavelmente, grávida.
Acho muito interessante que o termo sub rosa signifique algo feito em segredo. A expressão "sob o signo da rosa" tem um senti­do bastante específico para os iniciados. Como vimos, para eles o segredo é a rosa - a rosa vermelha da "outra Maria': a Maria que representa Eros, o aspecto nupcial apaixonado do feminino que foi negado pela Igreja estabelecida. Eros é um anagrama de rosa, e essa flor tem sido consagrada às Deusas do Amor desde a Antiguidade.
Os rosa-cruzes, cujas sociedades secretas proliferaram durante o século XVII - mas que, provavelmente, se originaram muito tempo antes -, usavam o símbolo da cruz cor-de-rosa, cujo real significa­do só era conhecido por um pequeno grupo de iniciados. Essa não era a cruz ortodoxa de Pedro e Jesus, a t que foi repudiada pelos hereges como um impiedoso instrumento de tortura. A sua cruz era o X vermelho da iluminação verdadeira, símbolo de lux ou "luz”. Entretanto, como a versão que tinham da vida e da natureza de Jesus estava em desacordo com a da Igreja de Roma, ela recebeu a "censura máxima" (censura X) e foi condenada e repudiada.
O sentido pejorativo da letra X na linguagem moderna - por exemplo, nos filmes de censura X (como os de sexo explícito) ou na maneira de marcar as respostas erradas de uma prova - é uma evidência do poder que o vencedor tem de destruir os vencidos e reescrever a história. A Igreja oficial desacreditou o X e o tornou um anátema na comunidade. Um uso anterior dessa letra, porém, foi observado em documentos, substituindo assinaturas. Podemos quase visualizar um herege torturado sendo forçado a assinar a sua confissão e, em vez disso, optando por marcá-la com esse símbolo. Esse é exatamente o tipo de "desinformação" capciosa que os pri­sioneiros da fé teriam considerado gloriosamente irônico.
A Cruz de Santo André
A prevalência do símbolo X na Idade Média e os significados que ele transmitia não podem ser menosprezados. Em algum momen­to, o X tornou-se associado ao termo antiestablishment. No século XIV, uma lenda sobre essa cruz circulava na Europa, talvez em decorrência da história de um livro do século XIII, de Jacobus de Voragine, intitulado Lenda áurea, que era então muito popular. A história dizia que Santo André fora martirizado em uma cruz de lados iguais, colocada de forma inclinada, o que parece ter sido uma tentativa de legitimar o X esotérico que estava sendo usado em pinturas - aquele que significava luxo André, o irmão de Pedro, primeiro apóstolo a encontrar Jesus, foi o santo escolhido para ter a honra de ser associado a essa cruz. A lenda provavelmente foi uma tentativa de dar preferência a essa ligação entre Santo André e o X e tornar esse símbolo mais importante do que a cruz venerada na Igreja de Pedro, além de estabelecê-lo como anterior.
Pelo fato de ter sido o primeiro a conhecer Jesus, Santo André teria uma certa prioridade sobre seu irmão Pedro. O nome de Pedro significa "pedra”. O nome André origina-se de andro, que sig­nifica "homem”, um contraste que não pode ter sido subestimado pelos hereges. Santo André tornou-se patrono da Escócia, consi­derada um refúgio dos templários após a purgação sofrida pela ordem em 1307. Sua cruz vermelha ainda figura na bandeira da Grã-Bretanha, sobreposta à cruz da Igreja de Roma.
Outro santo freqüentemente associado ao X era São Jorge ­denominado o Cavaleiro da Cruz Vermelha -, sempre retratado segurando um escudo branco no qual há uma cruz vermelha. Segundo a história, ele matou um dragão e salvou uma dama em perigo. A "besta" é, invariavelmente, uma ameaça à "mulher" (Apocalipse 12:6), enquanto a cruz vermelha é associada ao resgate dessa figura feminina (e, hoje, é um símbolo do atendimento de emergência - os símbolos correm profundamente em nossa cons­ciência e estão sempre aflorando). Os cruzados europeus tiveram o primeiro contato com o culto de São Jorge no século XI, durante sua estada nas cidades orientais do Império Bizantino. Na tradição popular do Cavaleiro da Cruz Vermelha, ele é chamado de "o sem­pre verde" e é o patrono das mulheres estéreis. A cura do solo árido e da "terra abrasada" é, sempre, associada ao X vermelho!
Os dois santos do X eram populares em toda a Europa. Um terceiro santo que costuma carregar um escudo com uma cruz vermelha é São Miguel, o arcanjo, outro defensor da "mulher" (Apocalipse 12:7), que, finalmente, vence a "besta': Na iconografia cristã, Miguel, a "ima­gem viva de Deus”, é identificado com o deus Hermes. Muitos artistas medievais parecem tê-lo incluído intencionalmente junto a André e Jorge em suas pinturas, talvez para terem mais uma boa desculpa para inserir o código vermelho X, a "cruz vermelha”, em seus trabalhos.
É claro que nem todos os artistas usavam os símbolos conscien­temente, mas muitos parecem ter feito isso como uma maneira de exibir sua verdadeira lealdade bem diante dos olhos da Inquisição. De certa maneira, eles eram como prisioneiros de guerra enviando o Salmo 23 ou seu hino nacional em código Morse para transmi­tirem esperança uns aos outros enquanto estavam presos. Ou eram como as palavras iniciais do discurso de posse do papa João Paulo II, em outubro de 1978: "Quando a Lua brilha sobre Czestochowa" - o primeiro verso de uma poesia polonesa de grande intensidade pa­triótica, que levava aos que lutavam pela liberdade do pais uma empolgante mensagem de esperança. Da mesma maneira, o X ver­melho na arte medieval assinalava a inabalável solidariedade com a tradição secreta herética. Parece quase desnecessário lembrar que tanto os hereges do Graal quanto os ativistas do movimento antico­munista Solidariedade, que surgiu durante os anos 1980 na Polônia, consideravam sagrada a imagem da Madona Negra. Há dois milê­nios ela tem sido a adorada patrona dos que lutam pela liberdade!
Muitos dos que desenharam as marcas-d'água na Europa e diver­sos pintores religiosos eram, certamente, ortodoxos. E houve trova­dores que apenas copiaram os temas e as frases de cantores que os antecederam. É preciso tomar os exemplos mais primitivos e exami­ná-los com bastante cuidado, como fiz com as cartas do tarô, para identificar aqueles que estavam promulgando as doutrinas da here­sia conscientemente. Mas as evidências indicam que muitos artistas e poetas importantes marcaram intencionalmente seus trabalhos com os sinais de sua Senhora, a Madalena. E a Inquisição, sem saber o que procurar, não prestou atenção no X e racionalizou vários símbolos para adequá-los às suas doutrinas da melhor maneira possível. No entanto, quem possui olhos para ver não pode ignorar que uma romã repleta de sementes vermelhas não é um símbolo espiritual, sobretu­do quando a pintura a exibe no colo de uma pessoa!
A origem do X vermelho como símbolo pejorativo de material de sexualidade explícita parece ter origem na Igreja secreta do Graal e em seus seguidores. É como se a Igreja oficial associasse essa letra às tentações e aos sinais "do mundo, da carne e do diabo" - resumi­dos, como sempre, no feminino, no oculto e na "sinistra': Mas o significado arcaico do X, a união entre masculino e feminino em uma parceria sagrada e igual, é inseparável de sua própria estrutu­ra: uma combinação (ou "núpcias") do antigo e arquetípico V, o cálice feminino, e o 1\, a lâmina masculina.
CAPÍTULO VII
O Unicórnio e a Dama
Os temas do Casamento Sagrado e da Noiva Perdida na cultura ocidental nos levaram a explorar enigmas da arte medieval que podem ser esclarecidos pelos dogmas da heresia do Graal. Entre essas obras de arte estão as fabulosas tape­çarias com unicórnios, importantes relíquias da Idade Média. Já foi sugerido que a série de tapetes denominada La Dame à la Licorne (A dama com o unicórnio), em especial, ilustra uma doutrina inespecífica dos cátaros. Estou convencida de que foi a heresia albi­gense do Graal que inspirou o artista a desenhar essa sutil obra­-prima - em homenagem à Noiva.
Segundo os estudiosos do assunto, o unicórnio era um animal mítico que já fora mencionado nos tempos clássicos pelos gregos Ctésias de Cnidos e Aristóteles e pelo historiador romano Plínio, entre outros. Não se tem absoluta certeza da origem desse mito, mas a pintura de um antílope de perfil em um mural da Idade do Bronze (2000-1500 a.C.) parece-se muito com o mítico unicórnio: o segundo chifre não fica visível atrás do primeiro. Essa é uma das possíveis fontes dessa lendária criatura, que se assemelha a um ca­valo com um único chifre. O Physiologus (Fisiólogo), livro sobre animais estranhos escrito no século III d.C. em Alexandria, reuniu mitos de várias espécies. O feroz unicórnio foi mencionado como um animal que não podia ser capturado por caçadores, mas que era atraído para dormir no colo de uma virgem, única ocasião em que poderia ser preso. Essa obra foi amplamente traduzida por mais de mil anos, e suas lendas circularam por toda a cristandade.
Os patriarcas da Igreja primitiva reconheceram o unicórnio como uma figura de Cristo, tradição que se estendeu até à Idade Média, quando eram atribuídos poderes especiais de cura a esse animal. O pó do chifre dessa criatura mítica fazia parte de qualquer estoque farmacêutico da época. Dizia-se ser possível purificar águas venenosas mergulhando nelas o chifre mágico. Em algumas repre­sentações da arte medieval, esse animal aparece molhando o chifre em uma fonte. Outras obras o retratam com a cabeça no colo de uma donzela, que, em geral, aparece sentada em um jardim cerca­do ou em uma paisagem com flores ao fundo. O unicórnio é um dos símbolos mais comuns nas marcas-d'água albigenses, o que já é um importante motivo para se examinar exemplos desse tema na arte e nas lendas.
Embora os apologistas medievais da ortodoxia tivessem lutado para dar um significado místico à lenda do unicórnio, as cono­tações do jardim e das imagens da besta de um só chifre no colo da donzela estão indiscutivelmente ligadas ao Cântico dos Cânticos. Intérpretes ortodoxos tentaram igualar o jardim cercado à virgin­dade de Maria, a mãe de Jesus, mas não era isso o que estava escrito na referência bíblica ao "jardim cercado”, encontrada no Cântico: "Jardim cercado é minha irmã, minha noiva, sim, jardim cercado, fonte selada" (4:12) e "Entro no meu jardim, minha irmã, minha noiva" (5:1). O Cântico completo exalta as delícias dos sentidos-­fragrâncias, gostos, visões e sons do jardim onde os noivos estão unidos. Sua cama é o gramado: "O nosso leito é viçoso" (1:15).
A Igreja, na tradição judaica, insistiu durante séculos que esse cântico dos amantes arquetípicos era uma alegoria mística, mas já observei que suas imagens eróticas são similares à poesia ritual do Casamento Sagrado, do Oriente Próximo. Estou convencida de que a dama do jardim retratada nas tapeçarias do unicórnio é a Noiva-Irmã do Cântico dos Cânticos. Isso não impede uma inter­pretação mística dessa tapeçaria ou do Cântico, apenas a antecede e a enriquece.
La Dame à la Licorne
A tapeçaria La Dame à la Licorne, exposta no museu de Cluny, em Paris, exalta o feminino e as delícias dos sentidos. Nos seis painéis da peça, a moça aparece em um fundo vermelho coberto com minús­culas flores e animais de todos os tipos, inclusive coelhos, que, dada a sua reputação de grande fertilidade, eram dedicados à Deusa do Amor. Está vestida com brocados floridos e usa jóias, enfeites e pen­teados do final do século XV. Ela segura um espelho, símbolo mais freqüentemente associado a Vênus/Afrodite, no qual o unicórnio está refletido. Ladeando-a, em cada painel, vê-se um leão (de Judá) e o próprio unicórnio, dois símbolos medievais de Cristo.
No primeiro painel da tapeçaria, o unicórnio levan­ta a saia da donzela, e seus cascos descansam, confortavelmente, no colo dela! O leão está segurando um estandarte que apresenta as cores da Deusa Tripla: vermelho, branco e azul-escuro. É uma ban­deira vermelha com três luas crescentes sobre uma fita azul-escura. Como a lua crescente é um símbolo da "donzela': o estandarte anun­cia que a moça é a Noiva-Irmã esperando por seu Noivo no jardim.
Até a bandeira da tapeçaria revela uma provocante associação com o Cântico dos Cânticos: "E o seu estandarte sobre mim era o amor" (2:4 - NVI). No Cântico, a Noiva é convidada para um ban­quete dos sentidos, e aquele que segura o estandarte do amor é o seu Noivo. Alguns estudiosos sugeriram que essa tapeçaria pode ter sido desenhada como um presente de aniversário para uma noiva em particular, possivelmente uma filha da família La Vista, de Lyon, no Sul da França, cujo brasão heráldico exibia essas três luas cres­centes.2 Ao contrário, acredito que essa família acabou ligada a esse timbre pelo fato de já possuir a maravilhosa tapeçaria com o estandarte. Uma fita idêntica com três luas crescentes aparece no brasão de armas de Lunéville, em Lorena.
O simbolismo da tapeçaria fornece um maravilhoso buquê que inclui os cinco sentidos, exaltando cada um deles separadamente. O primeiro painel, no qual a donzela segura um espelho, ilustra a "Visão”. No segundo, denominado "Som': ela está tocando órgão. No terceiro, chamado "Paladar': ela aparece pegando doces de uma tra­vessa. Em "Olfato”, o quarto painel da série, a moça molda uma coroa de cravos, enquanto sua criada segura um jarro com pervincas em flor. John Williamson, um medievalista e estudioso das plantas, fez uma análise detalhada do simbolismo da flora nas tapeçarias do unicórnio expostas no Cloisters, uma extensão do Metropolitan, o famoso museu de artes de Nova York. De acordo com essa pesquisa, o cravo era um símbolo medieval do noivado, e a mirta, do casamento!
No livro The Oak King, the Holly King and the Unicorn (O rei car­valho, o rei do azevinho e o unicórnio), Williamson observa que muitas árvores e plantas das tapeçarias do unicórnio eram utiliza­das para tratar problemas de fertilidade (goiveiro, cravo-da-índia, margarida, violeta) ou eram consideradas afrodisíacas (pé-de-be­zerro, pervinca e uma espécie peculiar de orquídea). Esse fascinante estudo é baseado na história natural da Idade Média, com as lendas e a sabedoria que envolviam suas plantas. O livro de John Williamson refere-se claramente aos sete painéis das tapeçarias do unicórnio exibidos no Museu Metropolitan, mas flora e fauna similares são encontradas nas tapeçarias do Museu de Cluny. Acredita-se que os trabalhos de ambas as séries foram tecidos na mesma época, em tomo do final do século XV, provavelmente na área flamenga da cidade de Bruxelas, e que os desenhos foram feitos por um artista francês desconhecido. Em vários painéis dessas tapeçarias vemos o cravo (noivado), a violeta (luxúria), a rosa (amor) e a pervinca (casamento) com árvores de carvalho (princípio solar), azevinho (princípio lunar), laranja (união conjugal dos sexos), romã (fecun­didade feminina) e pinho (fertilidade masculina).
Segundo algumas interpretações, esses painéis retratam um namoro medieval ou, talvez, o culto do amor fidalgo. É bastante claro que a progressão da série vai se tornando cada vez mais ínti­ma. No quinto painel, o "Tato", a moça acaricia o chifre do uni­córnio. Ela mesma segura o estandarte, e o coelho brinca com uma minúscula flor vermelha em forma de X. Isso poderia ter sido acidental, mas não acredito nessa hipótese. A mu­lher nesses painéis é a Domina dos trovadores, a Amada. Ela é tam­bém, obviamente, o protótipo da alma da qual Cristo é o Noivo místico. O êxtase do casamento místico é prenunciado no mundo físico. Assim, as tapeçarias podem ter tido o objetivo de refletir as duas realidades: a transcendental e a terrena.
O sexto painel mostra uma tenda azul-escura, mantida aberta pelo leão e pelo unicórnio, que carregam os estandartes da Noiva-Irmã. A moça tirou o colar e o está entregando à criada. Essa jóia também é mencionada nos Cânticos: "Enlevaste-me o coração com um dos teus olhares, com um dos colares do teu pescoço" (Cântico dos Cânticos 4:9). Acima da tenda, que representa o santuário, aparecem as palavras A mon seul desir (Para o meu próprio desejo). A tenda é a câmara nupcial do Casamento Sagrado, onde a Noiva espera por seu Noivo: "Deixe o meu amado entrar nesse jardim e comer os seus excelentes frutos" (Cântico dos Cânticos 4:16).
O Noivo de Israel
O unicórnio é mencionado no Salmo 92, na versão grega da Bíblia, o Septuagint: "Meu chifre será louvado como o chifre do unicórnio, será ungido com o óleo fresco." Esse texto associa o unicórnio à unção do rei e ecoa o versículo do Salmo 23, no qual o rei se dirige à deidade feminina: "Unges a minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda:' Talvez o unicórnio tenha se tornado um antigo símbolo dos reis de Israel por causa dessa associação entre o seu chifre e a unção do rei.
Essa passagem também pode ser a fonte de uma conhecida asso­ciação da mítica besta com Jesus Cristo, o Messias Ungido de Israel. Todas as profecias e todos os salmos do Messias davídico na Bíblia hebraica eram entendidos pelos exegetas do cristianismo primitivo como uma referência também a Jesus. A unção do "chifre" ou da "cabeça" do Noivo/Rei era parte de um antigo ritual do hieros gamos. É claro que a Igreja medieval teria ignorado as conotações sexuais do chifre solitário, ressaltando o simbolismo da força e da pureza. No entanto, é estranho que o unicórnio da lenda seja atraído para colocar a cabeça no colo de uma virgem.
A poesia do ritual do hieros gamos, escrita em sumério antigo para a Deusa do Amor, Inana, inclui os versos:
O rei vai de cabeça erguida para o colo sagrado,
Segue de cabeça erguida para o colo sagrado de Inana,
O rei está chegando com a cabeça erguida,
Chegando à minha rainha de cabeça erguida...
O Noivo/Rei de "cabeça erguida" ou de "chifre" procura, inevi­tavelmente, o colo da Noiva para a consumação do Casamento Sagrado. O mesmo faz o mítico unicórnio. O significado erótico das imagens não pode ser ignorado. Embora as tapeçarias tivessem sido tecidas na aurora do Renascimento (1500 d.C.), a história do unicórnio com a cabeça no colo da virgem originou-se no mundo clássico, período em que eram rotineiras as imagens do rei sagrado e de seu casamento com a Deusa do Amor.
O atributo mais importante do rei sagrado era a virilidade e sua mais importante função era a de proteger os seus domínios. Mais tarde, isso foi traduzido na habilidade de gerar filhos. Sem her­deiros, um rei era considerado fraco, e o futuro de seu reino, incer­to. Essa realidade física aplicava-se aos monarcas da Europa com a mesma intensidade com que se referia aos reis de tempos mais pri­mitivos. Sem dúvida, o mundo medieval compreendia a natureza erótica das tapeçarias, principalmente se levarmos em consideração o fato de que os painéis que hoje estão expostos no Cloisters já enfeitaram os dormitórios do duque de La Rochefoucauld, pro­prietário dessas peças no século XVI. O castelo de Verteuil, que ele possuía, fica a aproximadamente oitenta quilômetros de Albi, que foi o centro da heresia albigense.
O lugar que as lendas e os contos populares ocupam na história cultural é de enorme importância. A questão principal não é de onde veio essa história. Mais relevantes são as perguntas: por que essa história em particular era tão apreciada? O que ela significava para as pessoas da época? O que havia nela que tocava tanto o coração e as mentes dos que a ouviam? A lenda do unicórnio deve ter atingido um ponto especial da vida dos europeus medievais, uma vez que foi fruto de uma enorme atenção.
A Heresia do Graal e o Unicórnio Caçado
A história do unicórnio perseguido e morto impiedosamente deve ter representado a versão "herética" da vida de Jesus, que incluía a sua masculinidade humana. A imagem de Jesus casado era um anátema para a Igreja oficial de Roma. Em sua análise das tapeçarias do unicórnio, John Williamson observa que esse animal era um símbolo da virilidade masculina. Concordo plenamente, observando que o unicórnio continuou a aparecer em trabalhos de arte e que sua popularidade era tanta que os apologistas da doutri­na tentaram desesperadamente lhe dar interpretações místicas e ortodoxas, desviando-se, de maneira consciente, das evidências físicas. As explicações oferecidas chegavam a ser bizarras. Uma das interpretações tradicionais do unicórnio com a cabeça no colo da donzela é a de que a mulher é a Virgem Maria, e o animal é Cristo tentando tornar-se encarnado em seu útero. Essa explicação igno­ra, porém, o significado fálico da cabeça do unicórnio, de seu chifre levantado e do colo da donzela. Essa mulher, com toda certeza, representa a deusa do mundo antigo, sentada no jardim, esperando para abraçar o Noivo/Rei.
Como o mítico unicórnio, que preferia morrer a ser escravizado, a heresia albigense do Graal foi impiedosamente caçada. As tape­çarias expostas no Cloisters revelam detalhes da lenda. No primeiro painel, os caçadores aparecem preparando-se para a caçada. O unicórnio, no segundo painel, está ajoelhado diante de um rio que se origina de uma fonte. Ele está.molhando o chifre, e diversos ani­mais esperam para beber da água.
Essa cena tem profundas associações simbólicas com a heresia, cujos pregadores itinerantes eram conhecidos como cátaros, ou "os puros': As "águas da verdade" fluindo da Igreja Católica eram consideradas poluídas pelos hereges, pois elas estabeleciam falsas doutrinas, principalmente as que se relacionavam à natureza humana de Jesus. O chifre representa, de maneira simbólica, a vi­rilidade de Jesus, exatamente a doutrina que estava no âmago da heresia. Assim, para os hereges, o chifre do unicórnio purificaria o maculado ensinamento da Igreja.
Em seu maravilhoso livro, Williamson observa que muitas das plantas que crescem perto do rio são tóxicas, refletindo a água venenosa que se origina da fonte poluída. Ele enfatiza, ainda, que é muito significativa nesse painel a presença da maligna Silene latifólia, ou "flor-da-morte", também conhecida como "flor-do-diabo”, ocupando um lugar de destaque. entre as pernas do caçador central, avisando de sua terrível intenção.
No terceiro painel da tapeçaria, os caçadores estão ao redor de um riacho tentando espetar o unicórnio com suas lanças. Na quarta peça, ele aparece defendendo-se, chutando com ferocidade e ferindo um dos cães. Esse é um estranho simbolismo para Cristo, que teria seguido docilmente para seu destino na cruz, segundo a história. Mas é um retrato preciso dos cátaros albigenses, que defenderam sua terra natal, Provença, com toda a bravura contra os opressores mercenários do Vaticano e do rei da França por toda uma geração, antes de sucumbirem a uma força superior, em Montségur.
O quinto painel é, infelizmente, composto de dois fragmentos dos quais falta um grande pedaço. O unicórnio conseguiu chegar ao jardim, que está cercado de rosas vermelhas e brancas crescendo ao longo de uma cerca. A mulher nesse fragmento é a criada da mulher do jardim, cuja delicada mão (a única parte dela que per­maneceu) acaricia o pescoço do unicórnio. O resto da tapeçaria, a parte que retrata a donzela, é a única que falta dos sete painéis. É impossível não questionarmos se essa perda foi intencional! Com toda certeza, a mulher estava segurando o espelho universalmente associado à Deusa do Amor. Em minha opinião, é pouco provável que esse pedaço da tapeçaria tenha sido destruído por acidente, uma vez que todos os outros painéis permaneceram intactos. O unicórnio devia ter os cascos no colo da moça, como nas outras séries de tapetes. Ou outro símbolo. no painel pode ter deixado a identidade da Deusa do Amor tão óbvia que foi intencionalmente destruído por um bem-intencionado guardião da fé ortodoxa, assim como os trunfos do tarô que retratavam A Papisa e a Imperatriz no baralho de Carlos VI devem ter sido eliminados por exibirem símbolos heréticos.
Na sexta tapeçaria da série da caçada, o unicórnio foi brutalmente sacrificado, e sua carcaça, jogada sobre um cavalo. A Igreja oficial caçou e sacrificou o fantástico animal - e o Cristo dos hereges está morto, assim como suas doutrinas, suas famílias e suas esperanças para o milênio. Segundo os estudos de John Williamson, a flora e a fauna desse painel refletem a morte do unicórnio, vencido e traído, e sua jornada para a esfera do submundo.
Nós já observamos que a linguagem de êxtase usada nas canções dos trovadores foi, mais tarde, "purificada" pela Igreja e moldada para referir-se à Virgem Maria e ao Cristo, alcançando ápices su­blimes nos escritos dos místicos medievais. Eu não me contento com a interpretação tradicional da caçada do unicórnio, culminando com a morte da mítica criatura de um só chifre no sexto painel e sua ressurreição no jardim cercado, na sétima peça. Acredito que isso tenha sido uma tentativa feita ex post facto, ou seja, retrospec­tivamente, para dar um sentido místico cristão a essas magníficas obras de arte heréticas. Assim como igrejas cristãs foram erguidas em santuários de deidades pagãs, e nomes e lendas cristãos foram dados a antigos deuses e deusas, a Igreja também tentou interpre­tar o unicórnio de maneira ortodoxa. Mas, por mais que tencio­nasse racionalizar, esse animal sempre foi e sempre será um símbo­lo particularmente exótico da virilidade do Noivo/Rei.
O tema da fertilidade e da sexualidade é ressaltado pela ico­nografia das árvores nas tapeçarias. Os frutos do carvalho e dos pi­nheiros são imagens visuais da masculinidade. A laranjeira expressa a união conjugal dos sexos: suas folhas, seus botões e seus frutos estão presentes na árvore, todos ao mesmo tempo, e seus botões eram tradicionalmente carregados pelas noivas. Outra tradição também é a romã, que simboliza a fecundidade feminina, "repleta de sementes”. O azevinho é o feminino, produzindo botões brancos e frutos ver­melhos, as cores da paixão e da pureza - a Noiva-Irmã. Suas folhas, contudo, são sempre verdes e com pontas, representando o masculi­no. Essa planta, muito usada para simbolizar o Natal, parece expri­mir a encarnação dos aspectos masculino e feminino de Deus. E é interessante observar que se trata de um arbusto que precisa de fer­tilização cruzada para produzir seus belíssimos frutos vermelhos.
Acredito que o unicórnio das tapeçarias representa o Jesus viril da heresia do Graal. Sua reputação de purificar as águas é clara. Era esse o clamor dos cátaros desde o início, o de que suas doutrinas eram mais puras - ou seja, mais próximas da fé dos apóstolos - do que as da Igreja romana. Como o unicórnio, a versão da fé cristã dos hereges foi abatida, traída e brutalmente sacrificada. Mas, como a verdade é eterna e não pode ser destruída, no fim o unicórnio descansa sob a romãzeira no jardim cercado.
O sétimo painel, que não fazia parte da série original, acrescenta um desenrolar inesperado à história. Nessa peça, o fantástico unicórnio está cercado pelos símbolos florais medievais de noivado, fertilidade e sexualidade - inclusive potentes e popu­lares afrodisíacos! O tipo de orquídea que é colocado de maneira evidente sobre o corpo branco do unicórnio é chamado, em francês, de testicule de prête, que significa "testículo de padre”. O pé-de-bezerro é um ícone da relação sexual, enquanto a pervinca tem fama de gerar o amor entre o homem e a mulher. A bistorta ajuda a fertilidade, a seiva do dente-de-leão aumenta o fluxo de sêmen, a violeta representa a luxúria e o cravo-da-índia simboliza a fertilidade feminina. Todas essas plantas simbólicas estão cuida­dosamente identificadas na obra de Williamson. A seiva vermelha que marca a pelagem branca do unicórnio vem do fruto extrema­mente maduro da romã posicionada acima, um antigo símbolo da fertilidade do útero. E, situada de forma proeminente no centro da figura, está uma flor comum, a íris, o modelo da flor-de-lis - ou a "pequena espada" dos merovíngios.
No último painel, o unicórnio está descansando em um jardim cercado, que é o símbolo da Noiva. Assim como os dogmas da here­sia, ele não morreu - está muito vivo! Do sétimo painel, ele provo­ca a Igreja oficial. Ninguém pode matar a verdade nem mesmo o rei sagrado: ambos têm maneiras de sobreviver às mais atrozes tor­turas e de se renovar! As tapeçarias do unicórnio, que pertenciam a famílias do Sul da França que sabiam de seu valor, podem ser interpretadas, sem dificuldade, como ilustrações da importante e não reconhecida heresia da Idade Média, a heresia da virilidade física de Jesus e de seu papel como o sacrificado Rei/Noivo de Israel, que ecoou nos mitos celtas e do Oriente Próximo.
Há outra pista nas tapeçarias do unicórnio que as liga, de forma indelével, à heresia. Nós já identificamos os símbolos predomi­nantes da Deusa do Amor - as rosas, a lua crescente, os coelhos e o espelho - e sabemos que tanto o leão quanto o unicórnio são sím­bolos de Jesus Cristo e dos reis de Israel. Nas tapeçarias do Museu de Cluny há dois painéis em que a letra X enfeita os ombros do vestido da donzela, o que poderia ser um simples acaso. Contudo, nas tapeçarias da caçada, no último painel, essa letra ocupa uma posição central e não pode ter sido inserida ali por acidente.
Nessa série, as letras A e E foram tecidas nos cantos e no centro dos sete painéis; e ambas causaram bastante controvérsia. Uma breve consulta ao livro de Bayley, Lost Language of Symbolism (A linguagem perdida do simbolismo), pode derrubar a teoria de que elas são as iniciais dos nobres que encomendaram o trabalho ou talvez de sua futura esposa (embora essa seja sempre uma possibi­lidade). A letra A, no formato em que aparece nas tapeçarias, é um hieróglifo estilizado para alef e tau, o "alfa" e o "ômega" do alfabeto hebraico. Significa "o Primeiro e o Último”. Ela é, ao mesmo tempo, um epíteto do Deus invisível e uma oração para um milênio de paz (contém a letra M em seu interior). Esse sinal predomina nas marcas-d'água da Idade Média. O livro de Bayley também fornece uma explicação para a letra E: ela significa "o Deus Vivo”. Talvez as tapeçarias tivessem sido feitas em homenagem a esse Deus Vivo, o Alfa e o Omega, e não a alguém que as tivesse encomendado.
Ainda mais significativo do que essas letras é o cordão que as une à romãzeira no sétimo painel da tapeçaria denominado "A caçada do unicórnio". O cordão está enrolado no tronco da romãzeira for­mando a letra X bem no meio da árvore e do painel. E para ter certeza de que esse X seria compreendido como algo consciente, ele. foi colocado ali não uma, mas duas vezes! Como os hereges usavam a letra X com freqüência como um código secreto de sua fé, não é de surpreender que ele esteja no centro do pomar cercado onde nascem romãzeiras, local de celebração do Casamento Sagrado – o jardim da Noiva-Irmã.
CAPÍTULO VIII
A Noiva no Folclore e na Lenda
Não posso concluir o assunto da heresia sem mencionar um tema recorrente que se relaciona a ela: o da princesa perdida, que aparece com freqüência no folclore europeu.
Mas, primeiramente, vamos destacar alguns pontos sobre as tenta­tivas da Igreja de Roma de sufocar a heresia do Graal.
No mesmo século que assistiu ao retomo dos cruzados e à irrupção das heresias, a Igreja de Roma fez uma tentativa geral de identificar Nossa Senhora, a Domina, com Maria, a mãe de Jesus. Uma nova celebração de Maria, a Festa da Imaculada Conceição, foi estabelecida em 1140 em Lyon, na região de Provença. Esse evento estimulou a interpretação de que a Virgem Maria fora concebida de maneira "imaculada" por seus pais (Ana e Joaquim, segundo a tradição da Igreja), afastando qualquer possibilidade de que fosse vista como um ser humano comum. São Bernardo de Claraval declarou que a nova festividade era algo que "os costumes da Igreja desconheciam e a razão não comprovava”). Essa doutrina equivoca­da da Virgem Maria "concebida sem pecado" refletia a visão medieval predominante, propagada pela Igreja, de que o sexo, mesmo no casa­mento) era, de alguma maneira, pecaminoso. Podemos nos pergun­tar como seria o mundo se, em vez disso, tivéssemos aprendido que o sexo é uma expressão sagrada, prazerosa e significativa do amor entre parceiros, como era no jardim do Amado.
É interessante observar que, no final da Cruzada Albigense, as filhas sobreviventes dos nobres daquela região foram obrigadas a se casar com descendentes das famílias do Norte do país, que, se­gundo se dizia, não haviam sido maculadas pela heresia. Como vimos, essa foi uma tentativa de dispersar a linhagem da Videira. Documentos da Inquisição evitavam mencionar esse aspecto de sua campanha contra os hereges do Sul, preferindo apontar as "doutri­nas" e práticas dos cátaros e, mais tarde, dos templários, como motivo para a perseguição. Mas, como muitos estudiosos moder­nos acreditam, os hereges albigenses, que aderiam a várias seitas e formas diferentes de persuasão, praticavam uma versão vívida e carismática da fé cristã. São Bernardo de Claraval disse sobre os cátaros de seu tempo que nenhum sermão poderia ser mais com­pletamente cristão do que o deles e que sua moral era pura.2 Mesmo assim, eles foram perseguidos e eliminados por mercená­rios a serviço do rei da França e do Papa, ajudados pela Inquisição oficialmente formada com esse propósito.
A fé dos hereges obscureceu-se pela inacreditável violência com que foi perseguida pelas autoridades da ortodoxia. Mas, como esta­mos vendo com esta leitura, os adeptos da heresia do Graal deixaram um legado na arte e na música que não pode ser ignora­do. O povo tem uma maneira de saber pelo coração. E a crença dos hereges ficou entrelaçada em suas histórias, em numerosas versões, algumas das quais posso citar aqui.
A Noiva Negra
Um dos rios que carregaram as águas da heresia com o passar dos séculos era formado pelos contos de fadas, que compõem o que denominamos folclore. Entre os mais populares estava a história de Cinderela. Existem dois fatos muito significativos sobre essa per­sonagem que se tornam relevantes para a nossa busca: ela era o "fe­minino perdido" - maltratada e mantida no "exílio" e na obscuri­dade, relegada à cozinha - e seu rosto, como o nome sugere, era coberto de fuligem (cinde e cendre equivalem a "cinzas"). Na ver­dade, ela era um eco da Madona Negra. A serviçal de rosto negro ou coberto de cinzas nos traz à memória a noiva de tez escura do livro de Salomão, queimada de sol em decorrência do trabalho nos vinhedos de seu irmão (Cântico dos Cânticos 1:6). Ela também nos lembra Sara, a criança de pele morena que estava no barco com Maria Madalena e sua família.
Cinderela é chamada Aschenputtel em alemão (asche que dizer "cinza"), outro reflexo das palavras do Livro das Lamentações que pranteiam o destino de Jerusalém e da filha de Sião: "Os que se cria­vam em escarlata abraçam montes de cinzas" (Lamentações 4:5). Cinderela, a princesa perdida cujo rosto era coberto de cinzas, finalmente se torna capaz de cumprir o seu destino como noiva do príncipe, com a ajuda de passarinhos e ratos (os elementos da natureza vêm em seu socorro!), e todas as pessoas do reino vivem felizes para sempre. O casamento invariavelmente cura a terra de­vastada nos contos de fadas europeus.
As feministas modernas viraram essa lenda de cabeça para baixo. Desprezando a insinuação de que uma mulher precisa do homem para ser completa, elas não perceberam o ponto principal da história: o de que é o príncipe que busca, com paixão, a sua parceira perdida.
O tema da "negritude" da princesa perdida mencionado em ca­pítulos anteriores - e sua identidade como Noiva-Irmã negra e filha de Sião - é importante demais para deixar de ser analisado com certa profundidade. Ele está refletido nos santuários da Madona Negra, na Europa, alguns dos quais contêm estátuas extremamente antigas.3 Acredita-se que a Nossa Senhora de Rocamadour, uma estátua que fica perto de Toulouse, no coração da região albigense, tenha sido visitada por Carlos Magno no século IX. Feita de cedro, suas mãos e seu rosto foram pintados de preto. Outras estátuas incluem Nossa Senhora de Valcourt (século X); Nossa Senhora de Myans, padroeira de Savoy (uma escultura com data anterior ao século XII); Nossa Senhora de Montserrat (século XII); Nossa Senhora de LaSarte (século XIII); e a Nossa Senhora da galeria sub­terrânea da Catedral de Chartres. Todas essas representações da Madona Negra parecem anteceder o poder da Inquisição.
Uma segunda estátua popular da Madona Negra está em Chartres. Lembrando da discussão sobre Boaz - a coluna esquerda quebrada do Templo de Salomão em Jerusalém -, parece mais do que uma simples coincidência o fato de que essa Madona Negra seja chamada de Nossa Senhora do Pilar. É claro que a razão óbvia é o fato de ela estar sobre um pilar. Mas alguém deve ter escolhido esse local específico para colocá-la. Seria mais uma referência ocul­ta à outra Maria, a viúva de Jesus?
Uma das Madonas Negras mais famosas é o ícone de Nossa Senhora de Czestochowa, a padroeira da Polônia, a quem o Papa João Paulo II presta especial devoção. Credita-se a ela o fato de ter protegido a nação polonesa da destruição causada pelos exércitos de Gustavo Adolfo durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Talvez uma geração futura lhe atribua o mérito de ter libertado a Europa Oriental do domínio soviético e do comunismo! A lenda diz que esse ícone de Nossa Senhora foi levado do Império Bizantino para a Polônia no século X. Curiosamente, o lado esquer­do do rosto da Madona apresenta um talho. Ela não apenas é negra como está ferida.
Duas pertinentes passagens das Escrituras nos ajudam a explicar o rosto ferido da Madona Negra. Uma delas está em Miquéias, apenas alguns versículos depois da referência a Magdal-eder, "for­taleza da filha de Sião”, por meio da qual o domínio (da casa de Davi) será um dia restaurado (Miquéias 4:8-10). Ele diz: "Com uma vara eles ferem a face do rei de Israel" (Miquéias 4:14). Essa Escritura é com freqüência usada para referir-se a Jesus, que foi oficialmente torturado pelos soldados romanos. O servo sofredor descrito em Isaías 53, que os cristãos consideram o protótipo de Jesus, e a Madona Negra de Czestochowa são um par perfeito. A "negritude" simbólica do servo sofredor mencionado nessa pas­sagem bíblica foi observada e aprimorada por São Bernardo de Claraval em seu comentário sobre o Cântico dos Cânticos, feito no século XII.
Uma famosa pintura, O caminho do calvário, do pintor italiano Simone Martini (1284-1344), retrata Maria Madalena com um talho similar no lado direito do rosto. Nessa obra, ela e Jesus usam vestes da mesma cor, mais uma vez um par perfeito. O X da cruz que Jesus carrega emoldura o torso de Maria Madalena, assim como o seu rosto aflito, marcado por uma cicatriz, é desproporcionalmente grande - como se ela, e não Jesus, fosse a figura central da cena. Parece que o tema do feminino maltratado não está representado casualmente por meio dessa outra Maria. São poucas as chances de que o X nessa pintura seja uma ocorrên­cia acidental do símbolo esotérico dos hereges.
A segunda referência nas Escrituras que a cicatriz da Madona Negra nos faz lembrar está no Cântico dos Cânticos. A Noiva fala da procura por seu amor que partiu: "Encontraram-me os guardas que rondavam pela cidade; espancaram-me, feriram-me... os guardas dos muros" (Cântico dos Cânticos 5:7). Os "guardas dos muros" são, sem dúvida, os guardiões da Igreja oficial que não que­riam permitir que o feminino, a Noiva, se unisse ao seu Amado e recebesse o status de parceira e igual.
É provável que esse tema arquetípico dos amantes separados e sua busca um pelo outro ocorra em todas as línguas e doutrinas sobre a Terra. No século XII, havia uma curiosa lenda sobre uma noiva negra do Oriente Médio que procurava seu marido, um cruzado, de quem ela se separara por acidente no caminho entre sua terra natal e Londres. Diziam que essa era a história do pai de um popular herói-santo inglês martirizado, Tomás Becket, cujo conflito com o rei Henrique 11 foi muito bem documentado.
Thomas B. Costain, um contador de histórias do século XII, escreveu um romance baseado nessa lenda. O nome da noiva negra era Miriam, e ela levava uma criança. Durante anos sua busca foi obstruída por mercadores ambiciosos, marinheiros desalmados, doenças e privações antes de, finalmente, se reunir ao marido inglês. Essa mulher era originária do Oriente Médio, e o romance é chamado The Black Rose (A rosa negra). O jovem herói era Walter de Gurney, um nobre que trouxe de volta de sua viagem à China (entre tantas possibilidades!) o segredo da fabricação do papel, o trabalho mais comum dos hereges albigenses. O tema romântico dos amantes separados culmina no reencontro do casal: a terra infértil é curada. Seria mera coincidência o fato de Thomas Costain também ter escrito uma eloqüente história intitulada The Silver Chalice (O cálice de prata) sobre o cálice perdido que Jesus usou para beber na última Ceia? Talvez esse autor também fosse um maçom ou, quem sabe, incrivelmente intuitivo! O fascínio pela princesa perdida e o Graal não decresceu com o passar dos séculos.
Contos de Fadas Europeus
Cinderela personifica a crença de que, quando a noiva for encon­trada e devolvida ao príncipe, o reino será curado. Esse tema é recorrente em nossos contos de fadas. A questão essencial é a busca pela verdadeira companheira do príncipe. Outra variação ocorre na história A bela adormecida, em que a princesa Aurora é picada por um fuso envenenado e dorme por cem (alguns dizem mil) anos. No final, o príncipe precisa atravessar uma floresta de urzes, que cres­ceram ao redor da amada e ocultaram a sua própria existência. Somente sua forte determinação consegue unir o casal. A imagem do impetuoso príncipe abrindo caminho pelos arbustos espinhen­tos, na tentativa de encontrar sua princesa perdida, a sua "outra metade': é particularmente significativa para o nosso mundo mo­derno. O masculino ferido, brandindo a sua espada de maneira imprudente, não está apenas ferido e frustrado, mas tornou-se perigoso. Quanto mais cedo ele se unir ao seu perdido, maltratado e repudiado lado feminino, melhor será!
Em outro conto familiar, a princesa Branca de Neve é condena­da à morte por sua madrasta. Quase sempre há uma madrasta maligna e invejosa ou uma bruxa feia tentando manter a princesa separada de seu companheiro - ela quer impedir que a Noiva tome o lugar que considera seu. Essa mulher má vê a bela princesa através de seu espelho mágico e tenta a donzela com uma brilhante maçã que a envenena. Somente a providencial chegada do príncipe salva Branca de Neve do terrível poder da maçã mortífera.
Também rica em associações com a Noiva Perdida e Jesus é a famosa história Rapunzel. Agora, a donzela é aprisionada em uma torre por uma bruxa malvada, que a roubou do próprio pai. Rapunzel é famosa por seu longo cabelo e sua bela voz, a "voz da Noiva" (Jeremias 33:11), tantas vezes mencionada no folclore. Um príncipe que estava de passagem ouve seu canto e consegue con­vencê-la a jogar as tranças douradas para que ele consiga subir até à torre. Nesse aspecto, os sinais que chamam a atenção são o cabe­lo da moça e a torre, pois esses símbolos predominam nas tradições referentes a Maria, a Madalena, que secou os pés de Jesus com o próprio cabelo e cujo epíteto significa "torre" em hebraico.
Esses dois elementos também estão presentes nas estranhas histórias sobre Santa Bárbara, um exemplo clássico da forma como os símbolos e a identidade dos santos se misturam aos personagens dos contos folclóricos. Segundo as lendas, que hoje a Igreja consi­dera espúrias, Santa Bárbara foi uma mártir virgem, filha de um cavaleiro pagão do século III, na Síria. Ela queria ser cristã, e seu pai, horrorizado diante dessa possibilidade, trancou-a em uma torre. O sacerdote que ia em segredo instruí-Ia na fé precisava subir por suas tranças para alcançar a prisão. Por mais inacreditável que possa parecer, a história de Santa Bárbara só foi contestada em 1969, com a publicação do novo calendário da Igreja Católica Romana! Durante séculos, ela foi retratada na iconografia cristã como uma bela mulher de cabelo fabulosamente longo, carregando nos braços a sua torre.
O caso de Santa Bárbara tem outra característica interessante que considero de grande relevância. O nome dela significa "estran­geiro': que, nos tempos clássicos, designava qualquer um que não falasse grego, ou seja, alguém procedente de outra região. Em algu­mas versões da história de Cinderela, a pequena princesa perdida é chamada de Barbarela, porque era originária de um país longín­quo. Ela é a desconhecida, a "estrangeira" exilada. Em uma das ver­sões dessa história, Cinderela diz: "Sou uma princesa de uma terra distante. Vocês não me conhecem." Talvez a conheçamos!
Recordando que a palavra magdala em hebraico significa "torre" (com conotações de "fortaleza”, ou "forte"), estou inclinada a acredi­tar que a estrangeira com o maravilhoso cabelo e a torre nos braços, retratada na iconografia medieval, é, na verdade, Madalena. No Cântico dos Cânticos 8:10, a Noiva-Irmã diz sobre si mesma: "Eu era um muro, e os meus seios eram como as suas torres." Ela se referindo a si própria como uma cidade murada, ou seja, Sião. A Noiva Negra - com a torre e o glorioso cabelo longo, que são seus símbolos ­precedeu os relatos criados para explicar a história de Santa Bárbara. Ela é, com certeza, a Noiva-Irmã do Cântico dos Cânticos e a Magdal-eder de Miquéias - Maria, a filha exilada de Sião.
Essa conclusão intuitiva é confirmada por uma curiosa prática característica da celebração do dia de Santa Bárbara na Europa Central. Nessa data, 4 de dezembro, quando o chão está coberto de neve e as folhas das árvores já caíram, os habitantes de um vilarejo localizado em uma montanha na Silésia (Alemanha) saem para juntar galhos secos e levá-los para suas casas, onde são colocados na água. Ali, os galhos brotam em honra da Dama da Torre! Isso me parece uma lembrança folclórica da miraculosa florescência do cajado de Jessé (o galho seco dos reis de Judá) por meio da mater­nidade da Magdal-eder. Ela não é a noiva do conto de Rapunzel nem Santa Bárbara. Ela é Maria Madalena, a princesa estrangeira que veio do outro lado do mar, cuja característica física mais mar­cante em todas as pinturas medievais é o glorioso cabelo que, um dia, ela usou para secar suas lágrimas que caíram nos pés de Cristo.
Como mais uma confirmação dessa confusão entre Santa Bárbara e Maria Madalena, é interessante observar que essa santa é a padroeira das fortificações. A lista de profissionais que a consi­deram sua patrona inclui arquitetos, pedreiros, engenheiros mili­tares e artilheiros que constroem e defendem fortalezas, as "cidades muradas" e os castelos da história medieval. Até hoje, as cores do Corpo de Engenheiros do Exército dos Estados Unidos são vermelho e branco, seu emblema é um castelo com duas torres e o Baile da Artilharia é realizado no dia de Santa Bárbara - 4 de dezembro ­nas bases militares norte-americanas por todo o planeta.
Não tenho intenção de reproduzir neste livro todos os contos de fadas de nossa infância. O meu objetivo é apenas mostrar a prevalên­cia do tema da contraparte feminina do belo príncipe, a qual aparece sempre ferida, perdida ou aprisionada. As primeiras versões conheci­das da história de Cinderela na Europa datam aproximadamente do século IX. Nesse período, os reis merovíngios foram depostos e ven­cidos enquanto sua herança era usurpada e destruída pelos herdeiros carolíngios de Pepino, em um suposto conluio com o Vaticano. Talvez aquela "madrasta" que tentou tantas vezes eliminar a pequena princesa merecesse sua péssima reputação.
Tentativas de Restaurar o Feminino
No século XII, os esforços para resgatar a Noiva esquecida de Jesus foram frustrados pela ortodoxia. Apesar disso, o culto da mu­lher, louvada nas canções dos trovadores, continha as sementes de um novo sistema de valores que lutava para enraizar-se na Europa. Esse modelo enfatizava os ensinamentos dos Evangelhos, que pre­gavam igualdade e fraternidade, e dava também uma nova ênfase ao mundo, à carne e ao feminino. Floresciam temas como os de Carmina Burana e canções dos poetas errantes cujo lema era, significativamente, carpe diem ("aproveite o dia"). Estudantes e artistas viajavam de um lugar para outra levando a mensagem do relacionamento/Eras, plantando as sementes que, mais tarde, derrubariam os muros do establishment. Os movimentos poste­riores da Reforma foram influenciados por essas primeiras tentati­vas de quebrar as correntes da tirania.
Um dos legados do movimento primitivo foi o repúdio protes­tante ao celibato (e, muitas vezes, ao masculino) como pré-requisi­to para se tornar um sacerdote cristão. Mesmo hoje, a consciência crescente do feminino sobrevive em nossa compreensão da esquer­da política, que tradicionalmente se preocupa com as necessidades dos anawin, os "pequenos" das Escrituras hebraicas.
Como vimos, porém, os cristãos ortodoxos obrigaram o culto da mulher a ser canalizado para o culto da Virgem Maria. Os aspectos de Mãe e Irmã do feminino foram honrados, mas o da Noiva foi sublimado. A Igreja não podia aceitar a esposa de carne e osso de Jesus. A única noiva de Cristo admitida pela hierarquia era a pró­pria Igreja - toda a comunidade de crentes - ou o seu microcosmo, a alma individual. A linguagem apaixonada da poesia fidalga e das imagens nupciais do jardim foram adotadas pelos místicos no final da Idade Média. E o relacionamento com Jesus, o eterno e místico Noivo da alma, tornou-se individualizado, enquanto a doutrina do feminino foi rearticulada pela Igreja. Somente um casamento mís­tico com Jesus era permitido.
Em muitas pinturas da ascensão e coroação de Nossa Senhora, a Virgem Maria, a Mãe de Jesus, é exaltada como a Noiva. Nessas obras, algumas vezes ela está sentada do lado esquerdo de Deus, oposto ao de Jesus. Nesse lugar, é reconhecida como "mãe de todos”, modelo da Sagrada Mãe Igreja. Nesse sentido, a Virgem Maria ofe­receu à Igreja Católica uma forte presença feminina, mas sempre ao arbítrio da hierarquia masculina. Ao elevar a mãe de Jesus à condição de Rainha do Paraíso no paradigma celestial, pelo menos uma bela imagem do princípio do eterno feminino foi preservada, embora a mulher de carne e osso de Jesus fosse deliberadamente renegada.
Entretanto, apesar dessa negação, o povo nunca se esqueceu da mulher-criança exilada do lar, com o rosto coberto de fuligem, mal­tratada, esperando pelo cumprimento de seu destino: o casamento com o príncipe celibatário.
CAPÍTULO IX
O Deserto Florescerá
A lenda afirma que o Graal restaurado terá o poder de re­cuperar a terra devastada. Quando ele for devolvido ao Rei Pescador, será capaz de curar suas feridas, as origens da desolação que impera em seu reino. E o Graal, como sugerimos, é o feminino perdido - a Noiva-Irmã do cristianismo, a esposa de Jesus. Como teria sido o nosso mundo se a Noiva da cristandade jamais tivesse sido esquecida? E como será ele quando ela for reabilitada?
O desequilíbrio de nossas instituições fundamentais, refletindo um Deus-Pai no topo de uma trindade totalmente masculina, tem exercido uma influência devastadora no mundo ocidental. Com o ritmo acelerado dos acontecimentos, em razão dos avanços científicos dos últimos trezentos anos - especialmente dos últimos cinqüenta -, a fratura na sociedade ocidental e na psique humana tornou-se cada vez mais aparente. A poluição em nosso planeta e o flagrante abuso de seus filhos estão intimamente relacionados a essa falha essencial.
Se não tivéssemos perdido a Noiva, o feminino teria sido esta­belecido desde o início como parceiro igualitário da deidade mas­culina. As preferências e qualidades femininas teriam sido hon­radas com a mesma intensidade no passar dos séculos e a inte­gração resultante na psique dos indivíduos teria se disseminado em suas famílias e comunidades. A negação do feminino como par­ceiro e amigo nos roubou o êxtase e reduziu as relações entre ho­mem e mulher a uma sombra distorcida da alegria compartilhada pelo casal arquetípico no jardim. O masculino ferido, em geral excessivamente mimado e profundamente frustrado, procura o seu êxtase perdido em lugares errados - na violência, no poder, no materialismo e na busca hedonista do prazer -, sem entender que ele só pode ser encontrado na relação com o feminino.
Uma das realidades mais tristes de nossa cultura é o fato de o predomínio do masculino ferido ter levado ao esgotamento emo­cional. Nas situações em que o feminino não é valorizado, um homem não tem verdadeira intimidade com sua contraparte, sua "outra metade". Com freqüência, ele não consegue canalizar suas energias para uma relação amorosa, uma vez que a sua parceira não é considerada digna e respeitável. Privado de seu oposto igual, o frustrado macho dominante provoca uma combustão: "Onde o Sol sempre brilha há um deserto sob a terra." As florestas morrem, os rios secam, a terra se fende. A devastação prevalece.
O Paradigma da Completude
O Santo Graal, a Noiva Perdida de Jesus, é a parte que está fal­tando em um antigo paradigma da completude. Havia uma mandala reverenciada nas culturas mais antigas que há muito tempo foi esquecida pela civilização ocidental. Ela era baseada nos símbolos arquetípicos de macho e fêmea, na "lâmina" masculina e no "cálice”, ou Graal, feminino. Essa mandala santa é o símbolo do Casamento Sagrado. É significativo observar que esse mesmo símbolo é encon­trado nos escritos esotéricos dos mestres alquimistas medievais, que o identificavam como a "pedra filosofal" da transformação espiritual. O modelo esquecido do Casamento Sagrado entre ho­mem e mulher, céu e terra, ainda é uma mandala da harmonia, da completude e do companheirismo.
No período neolítico, segundo estudos recentes, houve uma época de ouro em que as diferenças entre macho e fêmea não envolviam uma acirrada luta pelo controle. Em vez disso, os rela­cionamentos fundavam-se em um companheirismo no qual os dons naturais masculinos e femininos eram aceitos e apreciados. Esse período da pré-história, que já se acreditou ser um mito, pode agora ser reconstituído por meio de artefatos encontrados em locais onde viveram civilizações que adoravam uma graciosa e ge­nerosa Deusa-Mãe. Descobertas arqueológicas comprovam a existência de sociedades nas quais os dons femininos - alimen­tação, cuidados, carinho e educação das crianças - eram honrados, nas quais a "lâmina" servia para cultivar a terra, e não para intimi­dar. Considerava-se a vida sagrada, os artistas e a sua arte flores­ciam e a criatividade era motivo de celebração.
Pesquisas fascinantes realizadas em todo o mundo sobre essas antigas culturas e sociedades de orientação maternal foram compi­ladas por Medin Stone, Marija Gimbutas e Riane Eisler, para citar apenas alguns estudiosos. Descobertas recentes revelaram que em numerosos santuários paleolíticos e neolíticos, datados de 7000 a 3500 a.C., a letra V era associada à Deusa-Mãe. A conclusão de Marija Gimbutas, antropóloga cultural que encontrou esse ideograma nos santuários da antiga Europa, é de que o V foi usado nos manuscritos da região e pode ter sido uma representação da deusa manifestada como uma ave.3
O estudo do simbolismo arcaico me faz questionar a conclusão de que o V representava uma ave. Na verdade, o V é um símbolo arcaico do "recipiente" ou "útero" de todas as formas de vida. Ele é o cálice arquetípico e simboliza a própria Terra, o único planeta que conhecemos onde existe vida.
Gostaria de sugerir que os símbolos arquetípicos de masculino e feminino (1\ e V) retratam um distante dualismo que pode ser recomposto e utilizado para formar um antigo paradigma da com­pletude. Essa imagem visual é, obviamente, o hexagrama. Na antiga doutrina da índia, o Casamento Sagrado do deus indiano Shiva e sua contraparte, Shakti, é representado por essa forma geométrica. De sua sagrada Dança Cósmica dos Opostos, que sim­boliza a interação entre as forças positiva e negativa, a harmonia se dissemina por todos os aspectos da vida das pessoas. Esse equilíbrio se reflete no bem-estar da comunidade e na fertilidade de suas co­lheitas e de seu gado. O hexagrama parece ter se difundido na direção do Ocidente, da Índia ao Oriente Médio e da Europa.
Embora o nome Eros tenha outras conotações, vou utilizá-lo para representar o princípio feminino do amor e da coesão no sentido junguiano, vinculado ao poder e à luz. Esses dois princípios são chamados yin/yang na filosofia oriental. O abandonado princípio do Eros/coesão, representado pelo V da Grande Deusa, tem sido desva­lorizado no decorrer dos séculos, desde aquele longínquo milênio, quando ele foi reverenciado. Vez por outra, o apreço pelo feminino surge e é reprimido. Nós já analisamos evidências do breve esplendor da rosa vermelha, a Noiva em Provença, no século XII, antes de ela ser forçada pela Inquisição a entrar na obscuridade.
Nossa adoração de uma imagem exclusivamente masculina de Deus é, ao mesmo tempo, desvirtuada e perigosa. De acordo com o princípio "Assim na Terra como no Céu': as preferências e a domi­nação masculinas fazem com que a sociedade forme instituições baseadas em um modelo "masculino': a ~, com o poder concen­trado no topo e as massas exploradas aprisionadas na base. Esse é o padrão das ditaduras e da opressão. Em uma sociedade em que o feminino recebe um quinhão igual, as crianças são alimentadas e as viúvas são consoladas; artes, literatura, música e dança são encora­jadas; a infância é feliz; o trabalho é produtivo; e as pessoas vivem em harmonia.
É interessante observar que após o milênio das guerras - e o conseqüente flagelo de pragas e fome que se seguiu -, as terras mediterrâneas dos impérios grego e romano, nos séculos que ante­cederam o nascimento de Jesus, desenvolveram um amplo culto de 1sis, Rainha do Céu e da Terra. Marie- Louise von Franz, estudiosa e intérprete dos trabalhos do psiquiatra Carl Jung, atribui esse culto da deusa ao fato de o sistema de consciência masculino desgastar-se. De fato, ele acaba atingindo a combustão total dada a excessiva ênfase que dedica às realizações mentais - ou do logos. Depois de algum tempo, ele precisa descansar das frenéticas atividades voltadas para o alcance de objetivos e procura sossego e abrigo no feminino, na sombra e na noite.
Em Alquimia, Marie- Louise von Franz observa que no fim de uma civilização patriarcal aparece a "enantiodromia" - o poder do princípio masculino "exaurido" é passado a uma "deusa" e, mais tarde, reafirma-se na nova era, que, em seguida, institucionaliza novas idéias e uma direção cultural diferente. As imagens desgas­tadas dos velhos tempos são abandonadas e outros arquétipos são encontrados para transmitir a mensagem.
Esse fenômeno foi ilustrado na vida da Igreja cristã primitiva quando os patriarcas tomaram o evangelho de Jesus pregado nas ruas e o institucionalizaram com normas, rituais e tratados es­critos. O princípio feminino da coesão era a prática inicial das primeiras comunidades cristãs, nas quais a unidade do Espírito havia dissolvido classes e barreiras sexuais, permitindo que mu­lheres e escravos participassem inteiramente da vida do grupo ­consentindo até que pregassem e profetizassem. Menos de um século após o seu estabelecimento, a liberdade e a igualdade dadas a mulheres, escravos e estrangeiros por meio da mensagem cristã já estavam sendo repensadas pelos homens no comando, e novas regras de comportamento ético e de práticas religiosas passaram a ser formuladas. A era da parceria teve vida curta, pois foi sobrepu­jada pelo retorno do papel masculino dominante e da relativa su­bordinação da mulher na Igreja e na sociedade como um todo.
O modelo hierárquico de instituições patriarcais, no qual to­das as decisões e todo o poder estão nas mãos do governante auto­crático ou da oligarquia, que fica no topo, está perdendo a vitali­dade no despertar da poderosa consciência feminina que começa a se expressar no mundo moderno. Essas instituições, que pregam a obediência total como a maior de todas as virtudes, começam a ruir sob a influência feminina da liberdade de pensamento, da criativi­dade, da intuição e da coesão. Isso conferiu visibilidade gradual aos valores que a mulher, tradicionalmente, considera mais relevantes, como a educação dos filhos e os cuidados com eles, bem como o aprimoramento da qualidade de vida. Sob a influência do princípio feminino ressurgente, existe a esperança de que todos os povos ainda venham a ser iluminados e passem a tratar com carinho da singular dádiva da vida da qual esse planeta "que carrega água" é o guardião. A "voz da noiva" (Jeremias 33: 11) está, finalmente, sendo ouvida.
O primeiro sinal que Winston Churchill utilizou como símbolo da determinação dos aliados em vencer a Segunda Guerra Mundial foi a letra V. Por um lapso do inconsciente, esse símbolo tornou-se, desde então, o sinal universal dos movimentos democráticos por todo o planeta. Conscientemente ou não, esse "cálice”, a letra V, é uma invocação da deusa e representa o princípio feminino do Eros! coesão. Mas o V não pode ficar só - uma sociedade baseada apenas no modelo \l por certo irá tombar. Ele vai sempre precisar da contrapartida do logos/razão, que se manifesta nas leis, na ordem, na disciplina e no autodomínio, para produzir o equilíbrio do hexagrama.
Os líderes das sociedades patriarcais, "os guardiões dos muros" (Cântico dos Cânticos 5:7), não compreendem a ferida que provo­cam em si mesmos quando negam a sua contraparte feminina en­quanto lutam para manter o seu poder e o status quo. Uma história muito interessante é contada sobre São Tomás de Aquino (1225-­1274), o grande articulador e definidor da doutrina católica e um dos principais arquitetos dos muros da Igreja oficial de nossos dias. São Tomás é o protetor contra a morte súbita. Parece que, pouco antes de morrer, esse estudioso sacerdote não conseguiu continuar a escrever sua obra, a Suma teológica, e declarou que todos os seus escritos eram como palha! Pouco tempo depois, ele estava viajando no lombo de um jumento quando bateu fortemente a cabeça no galho de uma árvore e caiu do animal. Naquela noite, sentindo-se abalado e doente, ficou em um mosteiro nos Alpes aus­tríacos. Os monges o persuadiram a sair da cama e dividir com eles um pouco de sua sabedoria, e São Tomás não se negou a fazê-lo. O tópico por ele escolhido foi o Cântico dos Cânticos; mas, quando dava sua interpretação do trecho "Venha, meu amado, saiamos ao campo, passemos a noite nos pomares" (7:14), morreu subitamente.
A Escritura que esse santo considerava mais preciosa foi o tema de seu discurso final, o cântico do Casamento Sagrado! É uma pena que esse episódio revelador tenha sido esquecido, enquanto a Suma teológica continue a ser ensinada em seminários por todo o mundo ­mesmo tendo sido repudiada há séculos pelo próprio autor! Os "guardiões dos muros", obcecados por manter a ordem e o con­trole, conseguiram evitar que a Noiva se tornasse uma parceira igual. A desvalorização do feminino deve ser revertida, não para ocupar o lugar do masculino, mas para assumir o papel da contraparte há tanto tempo desejada, a Noiva-Irmã Perdida. Juntos, eles precisam correr pelos campos para preparar a terra, semear e colher.
Existe uma antiga promessa nos salmos da Bíblia hebraica: "Os que semeiam com lágrimas ceifarão com alegria... e voltarão com júbilo trazendo consigo os seus feixes" (Salmos 126: 5-6). Essa pas­sagem profetiza o retorno dos remanescentes de Israel do exílio na Babilônia. É hora de, mais uma vez, deixar a "Babilônia': símbolo do império adorador do Sol e do poder, e retomar à Terra Prometida, "onde correm leite e mel': onde os princípios masculi­no e feminino são celebrados juntos, em parceria, e onde a * é a base da completude.
Há muitos séculos, o Logos masculino tem sido entronizado à direita de Deus, adorado e glorificado nas orações e na consciência cristãs, levando a civilização ocidental a uma tendência "direitista': É hora de reivindicar o Eros, o aspecto nupcial da divindade. Nós já conhecemos o Logos de Deus - a Palavra que se fez carne em Jesus. Agora, precisamos passar um tempo com a Dama do Jardim, nos regozijando com sua bondade, ternura, preocupação e com­paixão pelos anawin. Esses pequeninos, as "uvas secas de Deus': têm sido causticados e ressecados sob os impiedosos raios do princípio masculino dominante.
Os Signos da Nova Era
O signo desta Nova Era, Aquário, é representado por duas linhas onduladas paralelas: =. Seu significado é a "dissolução das for­mas", mas ele não representa a água, como poderíamos pensar. Segundo os astrólogos, Aquário é um signo do ar. As formas que podem estar se dissolvendo sob a sua influência são as nossas insti­tuições patriarcais de governo, a Igreja e até a família. E as ondas que as estão desfazendo são as águas figurativas do Espírito Santo, o Espírito da Verdade. Essa verdade está nas ondas do ar, da comu­nicação de massa e da imprensa livre, que fizeram do mundo uma aldeia. Elas estão derrubando, com rapidez, as barreiras artificiais de nação, raça e credo, permitindo que os indivíduos vejam a si mesmos como um só corpo unido a toda a criação. Os vôos espa­ciais das últimas décadas nos permitiram enxergar à distância o nosso planeta como ele realmente é, sem cercas, sem muros. A ver­dade segue a sua marcha!
Os adeptos da heresia do Graal acreditavam que o resgate e a va­lorização do feminino eram a chave para o cumprimento das pro­messas milenares de paz e justiça universais. Talvez eles também tivessem a esperança de que a hora da libertação ocorreria no futuro amanhecer de Aquário, quando as ondas do Aguadeiro dis­solveriam as estruturas patriarcais da sociedade e uma nova força cultural surgiria. Os artistas e esotéricos medievais impregnavam-se da astrologia. Seus estudos de ciência, filosofia, medicina e astrono­mia os levaram a formar sociedades secretas e formular seus es­critos sob a forma de símbolos para que pudessem praticar as artes ocultas em relativa segurança. Um bom exemplo disso é encontrado nos textos dos alquimistas medievais e renascentistas, que uti­lizavam símbolos astrológicos para explicar suas descobertas nos campos da filosofia e da psicologia.
Como vimos, a alquimia não era, originariamente, a busca por uma fórmula metalúrgica de transformar chumbo em ouro. Os tex­tos básicos dos antigos mestres alquimistas tratam da transmutação de uma pessoa comum em um ser espiritual. Esses escritos se referem ao uso das doutrinas do Evangelho sobre o serviço e o sacrifício. As provas pelas quais passamos são a própria vida, e o objetivo é a união com Deus. O indivíduo transformado é alguém que encontra a "pe­dra filosofal" - freqüentemente associada à sabedoria - ou a "pérola de grande valor”. Em alguns textos alquímicos, essa sabedoria é ilus­trada com o símbolo do hexagrama (O ponto do lado direito superior representa a presença de Deus.) Mais uma vez, encontramos a sagrada união dos opostos e a completude/coesão ilustradas pelo hexagrama.
Os símbolos dos alquimistas são iguais aos que foram encontra­dos nas marcas-d'água albigenses e entre os rosa-cruzes, maçons e artistas esotéricos, como vimos em capítulos anteriores. Muitos desses símbolos começaram a ser resgatados no século XX por estudiosos das civilizações medievais e astrólogos. Contudo, grande parte dessas pessoas parece não ter percebido o elo vital: a heresia do Graal e o seu segredo da Noiva Perdida.
A tradição rabínica judaica ensina que a Arca da Aliança, guarda­da no Santo dos Santos do Templo de Salomão, no Monte Sião, continha não apenas as tábuas nas quais os Dez Mandamentos estavam inscritos, como também "um homem e uma mulher abra­çados na intimidade, no formato de um hexagrama”. Essa tradição articula a base fundamental da sociedade hebraica - as tábuas re­presentam os preceitos da aliança, o hexagrama simboliza o hieros gamos, a íntima união dos opostos. O significado do hexagrama é resumido na palavra hebraica shalom, significando "paz e bem-­estar”. É, ainda, a oração do universo.
Pesquisas recentes sobre o aspecto feminino de Deus na tradição hebraica revelam que o Santo dos Santos era a câmara nupcial na qual se consumou a união de Yahweh, o invisível Deus Único, e sua contraparte, Shekinah (ou Matronit, como ela era muitas vezes chamada). Com a destruição do Templo, segundo o mito judaico, o relacionamento de Yahweh e Shekinah foi rompido, e Yahweh voltou aos céus para reinar sozinho. Enquanto isso, sua Noiva, exi­lada, perambulava na Terra como a comunidade de Israel na Diáspora - e como Magdal-eder e Cinderela!
Encontramos essa Noiva-Irmã, ainda à procura de seu Noivo perdido, no Cântico dos Cânticos 1:15: "Eu sou morena, porém formosa como as tendas de Quedar." A Noiva continua explicando que a negritude de sua pele se deve ao trabalho nos vinhedos de seu irmão, sob sol intenso. Ela está bronzeada, escurecida, por servir ao princípio solar. Como observamos, supõe-se que o Cântico dos Cânticos tenha sido uma antiga canção de casamento. Ele perma­neceu entre as Escrituras sagradas de Israel, amado e reverenciado por gerações posteriores, e foi emprestado à cristandade pelo ju­daísmo. Até o século XIII, a Noiva costumava ser associada a Maria Madalena. E o símbolo sagrado continuou na tradição rabínica como o mais importante do Casamento Sagrado, uma promessa de harmonia e bem-estar.
Em muitos mitos do rei ou deus ferido ou inválido, inclusive no do Rei Pescador Anfortas, do poema "Parsifal”, seu ferimento é no pé ou na coxa - uma metáfora universal para os órgãos genitais na arte e na literatura ocidentais. Ele será curado somente quando a sua contraparte feminina for encontrada. Essa reunião é fonte de bênçãos, alegria e fertilidade, que emanam da câmara nupcial e se derramam por toda a família e a comunidade. Os companheiros separados curam-se por meio de seu reencontro, uma vez que a separação é sua verdadeira ferida!
O Projeto para o Templo
"Existe alguém que se lembre da antiga glória dessa casa?”, per­gunta o profeta hebreu Haggai. A data era 520 a.C., e o Templo de Salomão, no Monte Sião, estava destruído. Os judeus retomaram a Israel após setenta anos de exílio na Babilônia, a cidade associada à adoração pagã. A Palavra de Deus para Haggai era de que o Templo devia ser reconstruído e que as bênçãos começariam a fluir outra vez quando suas fundações estivessem concluídas - e não depois que o Templo estivesse pronto, mas quando fosse iniciado! Quando compreendermos o projeto do verdadeiro Templo - o equilíbrio sagrado e gerador da vida das energias masculina e feminina, na­tural do próprio cosmo, e o simbolismo que retrata o conjunto da sabedoria da Antiguidade -, as bênçãos começarão a fluir como um plácido rio por entre as terras ressecadas do planeta. Segundo a promessa de Isaías, o deserto florescerá. A paz e o bem-estar universais poderão ser restaurados quando o projeto do Templo for, abraçado em nosso consciente. O projeto é ao hexagrama.
Um dogma interessante da sabedoria esotérica é de que o símbo­lo do impulso cultural de toda nova era é embrionário e está presente "no cenário" no momento em que a era anterior começa a morrer. De acordo com os Evangelhos, na noite em que Jesus foi preso no jardim de Getsêmani e levado à Fortaleza Antônia para ser interro­gado, soldados romanos o torturaram e o coroaram com espinhos. Entalhado nas pedras que cobrem o chão dessa fortaleza, no átrio onde se diz que a tortura ocorreu, está o emblema do Casamento Sagrado com uma pomba pairando sobre ele, de asas abertas. Acredita-se que esse símbolo foi gravado ali pelos soldados romanos da guarnição, talvez relacionado a algum jogo popular, como o xadrez. De qualquer modo, sua presença naquele cenário parece mais do que uma simples coincidência. Esse emblema representava a era que se aproximava, a era do companheirismo e da completude, embrionária nos ensinamentos de Jesus descritos nos Evangelhos.
Os alquimistas são conhecidos por terem usado esse mesmo sinal para designar a pedra filosofal, o objetivo de seu trabalho de transformação. É provável que eles não soubessem que o emblema estava no chão do átrio em que o Noivo/Rei de Israel foi torturado. É mais plausível imaginar que o seu conhecimento de geometria e símbolos sagrados os tenha feito adotar o hexagrama por causa de seu significado intrínseco de completude e companheirismo. Este símbolo, o hexagrama, resume as palavras iniciais da Bíblia hebraica em Gênesis 1: "No princípio Deus criou os céus e a Terra... e o espírito de Deus pairava por sobre as águas." A presença de Deus, que na escrita cifrada dos alquimistas é um pequeno ponto, é representa­da pela pomba no emblema que está no chão da Fortaleza Antônia.
Nos textos dos alquimistas, a estrela sozinha pode significar o "caos”, enquanto a adição do ponto ou da pomba cria o significado de "cosmo”. A idéia é de que a presença e a orientação do Espírito Santo oferecem direção e significado ao universo criado, uma visão teológica do mundo com profundas raízes na tradição judaico-­cristã. A pomba do Espírito pairando sobre o hexagrama do hieros gamos gravada no chão da Fortaleza Antônia é um símbolo da comple­tude e da transformação espiritual para todas as eras.
Talvez seja relevante o fato de que os adeptos medievais das doutrinas secretas tenham optado por não louvar o crucifixo. Em vez disso, o consideravam um instrumento de tortura, indigno de veneração. Eles glorificavam o X da iluminação, - a promessa do milênio - e a pomba do Espírito.
A Pomba, O Cordeiro e o Peixe
A pomba é um dos símbolos cristãos mais familiares e amados, interpretado como um sinal do Espírito Santo, que só se tornou masculino quando foi traduzido para o latim spiritus sanctus. A palavra hebraica usada para o Espírito é feminina. Nas cosmologias antigas, o Espírito era sempre feminino, e a pomba era a ave que o representava. Precisamos analisar a pomba com dois outros antigos símbolos associados a Jesus: o peixe e o cordeiro. Ambos aparecem com enorme freqüência na iconografia cristã e têm um significado especial para a história da Noiva Perdida.
Quando João batizou Jesus no rio Jordão, o céu se abriu e os espectadores devem ter se surpreendido ao verem uma pomba descer e pousar sobre Jesus. Essa ave apresenta um claro significa­do simbólico. As pombas no mundo antigo eram consagradas à deusa - Afrodite, Vênus, Ísis e Sofia. Houve especulações de que esse sinal, citado na narrativa do Evangelho, tinha o objetivo de indicar que Jesus era uma encarnação de Sofia, a Sabedoria Sagrada, ou "filho" dela - idéia comumente admitida pelas seitas gnósticas dos primeiros séculos da cristandade.
Quando os fariseus imploraram a Jesus por um sinal, ele lhes disse que o único que poderia enviar seria o de Jonas (Mateus 16:4). Diante da atual discussão sobre que palavras teriam sido realmente ditas por ele e quais teriam sido acrescentadas mais tarde por intér­pretes e apologistas, talvez seja importante observarmos com mais atenção esse "sinal de Jonas”. A citação pode ter sido interpretada após a ressurreição como uma profecia sobre três dias em uma tumba, representados previamente pelos três dias em que o profeta Jonas ficou preso dentro da barriga de uma baleia. Mas existe outro entendimento possível: em hebraico, Jonas significa "pomba”. E se Jesus realmente afirmou que o sinal que daria seria o de Jonas? E se a comunidade tivesse se lembrado dessa afirmação, mas a in­terpretado mal e, posteriormente, a "enfeitado"? Talvez a intenção de Jesus fosse dizer que ele viera sob o signo da pomba. Por certo seus discípulos já sabiam disso, uma vez que o Evangelho de Marcos afir­ma que o Espírito, sob a forma de uma pomba, desceria sobre Jesus em seu batismo (Marcos 1:10).
O Amanhecer da Era de Peixes
Poderíamos então dizer que o carismático mestre que era capaz de curar, cujo sinal de batismo era uma pomba, foi sacrificado como um cordeiro (Isaías 53:7) e educado como um peixe. Para compreender essa afirmação radical, é preciso saber que o signo do zodíaco do mundo antigo que estava ascendendo na época de Jesus era o de Peixes. Com o tempo, as culturas helenizadas do Mediter­râneo apropriaram-se do carismático judeu itinerante, e ele se tornou o Kyrios, o portador, ou Senhor daquela nova era. As ini­ciais das palavras da expressão "Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador" formam, em grego, o termo ICHTHYS ("peixe"). Em pouco tempo os perseguidos seguidores de Jesus estariam dese­nhando na areia a figura de um peixe para se identificarem como membros da nova religião.
Em quarenta anos a tradição literária que cercava Jesus estava repleta de alusões a pescadores: pescadores de almas, suas redes se partindo; os pães e peixes; os 153 peixes na rede; Pedro, o pes­cador... Apesar das recentes explicações de natureza econômica, não é por acaso que os católicos tradicionalmente comem peixe nas sextas-feiras - há séculos o cristianismo é associado aos peixes. A era astrológica de Áries, o Carneiro, fora substituída pela era de Jesus Cristo, Filho de Deus, o Peixe, e os epítetos dos deuses ante­riores lhe foram atribuídos, inclusive os de Senhor, Senhor da Luz, Pastor, Noivo e Filho Fiel.
Associações entre as tribos nômades da era patriarcal e o símbo­lo astrológico do Carneiro já foram observadas em outras fontes. Nas Escrituras hebraicas há várias referências ao pastoreio de rebanhos desse animal, bem como às oferendas de carneiros ima­culados. No Evangelho de João, João Batista proclama Jesus o Cordeiro de Deus; ele saúda seu primo com essa denominação quando eles se encontram às margens do rio Jordão (João 2:29). O cordeiro é o animal oferecido no Templo em sacrifício a Yahweh.
Em Isaías 53, o servo sofredor de Yahweh é comparado ao cordeiro levado ao abate. E a imagem desse animal sacrificado é enfatizada pelo autor do Apocalipse, que se refere a Jesus como o Cordeiro.
Após a morte de Jesus - o Cordeiro de Deus -, judeus devotos continuaram a levar oferendas de cordeiros e pombas ao Templo de Jerusalém durante as quatro décadas seguintes, mas a prática se extinguiu com a destruição dessa edificação no século IX d.C. A religião dos judeus não podia mais ser praticada da maneira que fora prescrita em suas Escrituras sagradas. Poderíamos concluir que a era de Áries estava oficialmente terminada. A era de Peixes, que Jesus chamou de "a era que virá': já havia começado. Pode-se dizer que ele foi a ponte entre as duas.
Fico tentada a acreditar que os iniciados das escolas de sabedo­ria do Império Romano no primeiro século reconheceram gra­dualmente que os seus mitos ancestrais do deus que morria e renascia haviam se tornado reais na figura de Jesus de Nazaré. Essa crença era a origem da doutrina cristã da Encarnação, o nascimento do Sol/Filho de Deus - o Logos encarnado. A articulação dessa idéia platônica é grega, e não hebraica. Numerosos escritos cristãos primitivos refletem o pensamento de que Jesus era o seu "Sol de justiça" e a "luz do mundo”.
Possivelmente, esses iniciados "iluminados" ajudaram a erigir o cristianismo como um sistema de doutrinas para dar continuidade aos valores fundamentais da civilização. Mudanças caóticas e o cruzamento de culturas criaram um tumulto social durante o primeiro século. As pessoas estavam em busca de um ponto de referência para a sua "nova era”. Acredita-se que a institucionaliza­ção de Jesus - o carismático Profeta/Rei judeu - como o portador da era de Peixes foi um trabalho dos iniciados das escolas de mis­tério desse século. Talvez eles tenham até planejado com ante­cedência o simbolismo dessa era e sua força cultural e depois esperaram por alguém que pudesse ser o "recipiente" desses símbo­los. De qualquer modo, devem ter reconhecido na histórica pessoa de Jesus de Nazaré um poderoso veículo para o novo tempo que nascia. Ao chamarem Jesus de Christos (Messias/Ungido) e Kyrios, eles conseguiram alinhar o culto popular e a mensagem do mila­greiro judeu com o signo zodiacal nascente: Peixes.
A mistura de influências judaicas e gregas pode parecer ilógica à primeira vista, mas devemos nos lembrar de que a área hoje co­nhecida como Israel esteve sob domínio grego por quase trezentos anos após as conquistas de Alexandre, o Grande, e que posterior­mente foi ocupada pelos romanos. Dizer que a mente e a cultura judaicas permaneceram intocadas depois de todos esses séculos de convivência seria absurdo. Como exemplo dessa mistura de influên­cias culturais, podemos citar uma famosa sinagoga do século VI, em Beth Alpha, em cujo piso há um mosaico do zodíaco com os mesmos símbolos que floresceram na arte européia da Idade Média.
Quem foi o primeiro a empregar as iniciais ICHTHYS para abre­viar o epíteto grego "Jesus Cristo, Filho de Deus, Salvador"? Quem começou a usar a imagem visual do peixe para representar Jesus e o movimento cristão, um símbolo que foi logo de início dese­nhado nas paredes das catacumbas fora de Roma? Tertuliano (que morreu aproximadamente em 230 d.C.) e Clemente de Alexandria (que morreu em torno de 215 d.C.) usaram o peixe como um sím­bolo para Jesus. Santo Agostinho continuou com essa prática.15 Alguns padres da Igreja referiam-se aos seus paroquianos como pisciculi, "pequenos peixes”. A fonte batismal era chamada piscina, e Tertuliano dizia sobre os iniciados no cristianismo: "Nascemos em água como peixes."
O tema do peixe/pescador permeia os primórdios da cristandade; porém, nos Evangelhos, Jesus nunca se referia a si mesmo como peixe ou pescador, mas como pastor, noivo e herdeiro do vinhedo. Os seus apóstolos é que foram designados "pescadores de homens”.
Na segunda metade do primeiro século, a imagem do peixe e a identificação de Jesus como o Senhor da era de Peixes permeou o pensamento cristão. As refeições que os adeptos dessa fé compartilhavam em suas casas incluíam o peixe. Muitos elementos da dou­trina e da liturgia cristãs primitivas, especialmente a refeição eucarística do pão e do vinho e os ritos batismais de iniciação, podem ser compreendidos como tentativas de adaptar o Jesus histórico, Filho de Deus, às práticas religiosas helenizadas que foram tomadas como empréstimo dos cultos de mistério, princi­palmente os de Tamuz, Mitra e Dioniso. Vários séculos se passaram até que Jesus fosse chamado de "Senhor'~ suplantando o imperador de Roma, mas, no final, ICHTHYS, o Peixe, acabou entronizado à direita de Deus como o Senhor dessa era.
Qualquer que tenha sido o objetivo inicial de Jesus, sua hele­nização já estava fortemente estabelecida na época em que o Evangelho de João foi escrito. O paroquial judeu carismático não era apenas o rabi, como os amigos o chamavam em Jerusalém, mas Kyrios. O Evangelho de Mateus, de aproximadamente 80-85 d.C., já oferece subsídios para a condição de "Senhor'~ relatando que os astrólogos - os Reis Magos (ou Sábios) - haviam "visto a sua estrela" (Mateus 2:2). Eles vieram do Oriente e ajoelharam-se em homenagem ao recém-nascido Rei dos Judeus.
Os astrólogos modernos sugerem que a estrela dessa passagem bíblica é uma alusão à constelação de Peixes, que ascendia. Nesse aspecto, entretanto, encontramos mais uma grande falha nas fundações da cristandade que não foi percebida pela Igreja primitiva: o símbolo do signo de Peixes são dois peixes nadando juntos, em geral em direções opostas. E a palavra latina pisces está no plural. No cristianismo, porém, em vez de dois peixes havia apenas um, Jesus Cristo, ICHTHYS, o "único filho gerado" de Deus, entroniza­do à direita do Pai. A Noiva/Contraparte desse filho fora perdida involuntariamente no caótico dia seguinte à crucificação. Talvez os patriarcas não tivessem percebido o estrago que fizeram ao elimi­nar a Noiva. De qualquer modo, quando, depois, a perda foi sentida (possivelmente não antes do século VI ou VII), eles devem ter acreditado que era tarde demais para reintegrar a mulher de Jesus, cujas pegadas haviam sido obscurecidas para que sua vida fosse salva.
Os Evangelhos relatam que Jesus veio para cumprir as profecias da nação judaica e para pregar uma nova percepção da constante pre­sença de Deus na comunidade - junto aos pobres, oprimidos e des­favorecidos. O conteúdo radical de sua mensagem ficou bem ilustrado quando ele virou a mesa dos mercadores no Templo, desafiando o status quo da elite de sacerdotes corruptos - "Os pastores que não cuidam senão de seu próprio pasto" (Ezequiel 34, Jeremias 23). O Jesus descrito nos Evangelhos é um herói antiestablishment, uma encarnação do espírito da sabedoria, gentil e bondoso com os pobres e um defensor da justiça. É esse Jesus o modelo a ser seguido por quem quiser viver dentro da verdadeira doutrina cristã.
O Jesus que governa vitorioso, Senhor do Universo, sentado à direita de Deus e objeto da adoração cristã aos domingos (Sunday, "domingo”, em inglês, significa "dia do Sol"), é uma divindade solar masculina da tradição oriental do Egito (Rá), Grécia (Apolo), Roma (Júpiter e Sol Invictus) e Pérsia (Zoroastro e Mitra). Mas existe outro Jesus, o curandeiro carismático que caminhou de san­dálias pelas ruas estreitas das cidades de Israel, que cuidou dos doentes e pregou uma mensagem de reconciliação e proximidade, cujo batismo foi acompanhado pelo sinal de uma pomba, que foi ungido em Betânia e crucificado como insurreto por um decreto de Roma. É esse o Jesus que fugia sempre que as pessoas tentavam fazer dele um rei - e cuja morte na cruz exemplificou de maneira radical as feridas de Deus, cujos profetas são tão universalmente desprezados e sacrificados.
Lado a lado com a versão ortodoxa do cristianismo pregada da cadeira de Pedro há outra história de Jesus, uma tradição oculta que tem sido considerada herética e, por isso, forçada a permanecer na obscuridade por vários séculos. À sombra das comunidades que acreditaram em uma cristologia superior, a do divino e onipotente Rei e Cavaleiro das Nuvens (um antigo epíteto de Baal, o Rei-Sol de Canaã), havia aqueles que amavam Jesus como irmão e amigo e que pregaram um Evangelho simples sobre relacionamentos refeitos e transformação espiritual. A cristologia inferior da primitiva comu­nidade de cristãos ebionitas revela continuidade entre esse grupo e os cristãos originais de Jerusalém, sob a liderança de Tiago, o irmão de Jesus. Depois que os ensinamentos de São Paulo e de líderes posteriores transformaram o judeu Messias/rabino em um Deus Salvador universal, a Igreja de Roma acabou (ironicamente) rotu­lando os ebionitas de hereges!
Nós já examinamos as crenças da tradição alternativa, aquelas da Igreja oculta herética, que ensinava que Jesus era um mestre caris­mático, pleno do Espírito, o Messias de Israel. Foi basicamente a minha busca por esse outro Jesus que me levou ao mistério que cerca o mito cristão do Santo Graal. E foram o meu amor e a minha reverência por esse Jesus que me pressionaram a clamar pela restauração de sua Noiva.
O Aguadeiro
Com o início desta era de Aquário, parece um tanto providencial que os algarismos romanos para os anos desde 2000 sejam MM e que as iniciais de Maria Madalena formem as linhas onduladas desse signo. Nas pinturas que retratam Madalena, seu cabelo é quase sempre longo, descendo pela cabeça como as ondas paralelas na representação do signo. Também considero estranho que, na catedral de Chartres, o vitral que retrata Maria Madalena tenha sido doado pelos "aguadeiros" - e que nenhuma outra informação tenha sido acrescentada.
Quem eram esses medievais aguadeiros? Seriam membros de uma corporação da cidade? Por que escolheram doar a imagem de Maria Madalena e não a de outro santo? Ou seria essa inscrição outra alusão cifrada à esperança de resgatar o princípio feminino e a Noiva na nascente era de Aquário? Segundo o Livro do Apocalipse, o casamento do Cordeiro é que vai, finalmente, fazer com que a água brote no deserto. O vitral foi instalado no importante san­tuário da Madona Negra com um dos mais antigos exemplos da Árvore de Jessé (aproximadamente em 1150), que aparecia com freqüência na arte medieval desse período para enfatizar a genealo­gia humana de Jesus na sucessão dos reis de Judá.
Em uma das fabulosas rosáceas de Chartres, Jesus, ainda bebê, no colo da mãe, está cercado de seus ancestrais - os reis de Judá da li­nhagem de Davi -, o que mais uma vez ressalta a genealogia dos herdeiros legítimos de Davi. Nessa rosácea, as faces dos soberanos de Israel que "caminharam com Deus" e foram fiéis a ele são negras como a da Madona que segura o Menino no colo; enquanto os ros­tos dos reis que ignoraram os preceitos de Deus são brancos. Há um dogma secreto dos artistas medievais: "Tudo tem um significa­do." Isso é tão verdadeiro em relação aos detalhes de cada peça quanto em relação à compreensão básica que tinham da realidade. A "negritude" dessas figuras parece referir-se à sabedoria daqueles que são servos voluntários de Deus.
A Pequena Sereia
Uma amiga de sete anos de idade, cujo nome é Sara, chamou a minha atenção para um curioso detalhe nos primeiros minutos do desenho da Disney, A pequena sereia. A pintura que a menina-peixe Ariel havia resgatado de um galeão afundado e mantido entre os seus tesouros era a Madalena penitente, obra de Georges de la Tour, artista francês do século XVII. O filme é adaptado da versão de uma história escrita por Hans Christian Andersen, mas nele há um final feliz que não existe na narrativa original- o casamento do príncipe com sua noiva. O único desejo da pequena sereia é sair do oceano e casar-se com seu amado. Talvez ela represente o segundo peixe do signo de Peixes, o que ficou esquecido e no lugar errado, submerso em nosso inconsciente por dois mil anos!
A malvada bruxa do mar e o bondoso pai de Ariel, o rei Posêidon, tentam impedir sua união com o príncipe. A bruxa do mar cons­pira para roubar a voz da sereia, tirando dela a capacidade de comu­nicar-se com o seu amado. (E também não foi roubada a "voz da Noiva" quando sua história foi declarada herética e seu casamento repudiado?) Mais uma vez, o tema do conto de fadas é o feminino levantando-se das profundezas da obscuridade para fazer cumprir o seu destino como companhia legítima do masculino. E, mais uma vez, é o príncipe que está passando por terríveis problemas, submer­so e perto da morte, quando Ariel vai salvá-lo durante a tempestade. Também é ele que, procurando desesperadamente por sua Noiva-­Irmã perdida, é ludibriado e maltratado pela bruxa do mar. A origem do seu sofrimento é a separação de sua amada.
Mas eu tenho uma pergunta: quem escolheu a pintura da Madalena penitente como a obra que ficaria pendurada na parede da caverna de tesouros da pequena sereia no filme da Disney? Seria uma associação consciente, feita pelo artista, entre a sereia e Madalena? Ou seria apenas o acaso, outra poderosa coincidência?
Uma questão ainda mais relevante é a escolha do nome Ariel para a personagem que, no livro de Andersen, não tem nome. Ariel é outra denominação para Jerusalém, usada no livro do profeta Isaías (29:1-2) como sinônimo de "cidade sitiada”. É o equivalente sim­bólico da "desolada Viúva Sião" do Livro das Lamentações e da Magdal-eder de Miquéias 4:8. Ariel representa os abandonados remanescentes do povo de Deus. Talvez a escolha do nome tenha sido inconsciente por parte de quem contou a história, mas seu significado é espantoso. A identidade verdadeira de Ariel é a da Noiva Perdida. A "donzela-peixe" está tentando ser reconduzida à nossa consciência como companheira/contraparte do belo prín­cipe. O símbolo da era de Peixes são dois peixes, não apenas um! Nadando em direções opostas, o signo astrológico de Peixes se parece muito com o yin/yang do Oriente, antigo símbolo da harmonia entre os opostos.
Nas marcas-d'água de Provença, a sereia segura o espelho de Vênus/Afrodite, a Deusa do Amor, o seu alter ego. Acredito que esse espelho, presente em várias pinturas da Madalena penitente, de George de Ia Tour (e também no primeiro painel da tapeçaria La Dame à la Licorne), reflita a compreensão de que o cosmo material, personificado no feminino (matter, que, em inglês, significa "ma­téria': origina-se do latim mater, que significa "mãe"), é a imagem refletida da divindade, entendida como a "outra metade" ou a con­traparte espiritual. É o mundo físico que manifesta "na carne" a invisível energia criadora do universo. Nesse sentido, o cosmo mate­rial (feminino em antigas cosmologias) "capta o espírito" no espelho da mulher e o mantém lá, tornando-o visível, assim como o oceano reflete a grandeza do céu, enquanto a Lua reflete a luz do Sol. Talvez isso explique por que a Deusa do Amor é associada a um espelho. Certamente não é por causa da vaidade, mas porque ela é a imagem refletida da invisível energia positiva do cosmo.
A pequena sereia com o espelho no filme da Disney é um dimi­nutivo da Rainha do Mar, a deusa arquetípica. Mas não é uma imagem materna - ela representa a "outra Maria': a Noiva-Irmã. O povo tem uma estranha maneira de contar suas histórias em for­mas arquetípicas. Não deveríamos nos surpreender com o fato de elas reaparecerem tantas vezes!
Resgatando a Noiva Perdida
Para restaurar o princípio feminino expresso em Maria Madalena, é necessário estabelecer sua verdadeira identidade como Noiva - e não como prostituta. Embora tenha sido mais tarde assim chama­da pela Igreja, a verdadeira Maria Madalena jamais foi desprezada por Jesus nos Evangelhos. Ela era o amor de sua vida. Como nos contos de fadas, o belo príncipe procura por ela há dois mil anos, tentando devolver-lhe o lugar ao seu lado que, por direito, lhe per­tence. Ele representa o aspecto Noivo/Pastor da deidade; ela, a Noiva: "Nunca mais te chamarão 'desamparada', nem a tua terra se denominará 'desolada'; mas chamar-te-ão 'minha amada' e tuas ter­ras, 'desposada'" (Isaías 62:4).
Após mais de dois mil anos do nascimento de Jesus, é hora de dar a versão correta dos fatos para revisar e completar a sua história relatada nos Evangelhos e incluir a sua mulher. Nosso meio am­biente destruído, nossas crianças vítimas de violência, nossos vete­ranos de guerra mutilados, nossas famílias auto-destrutivas e nossos cônjuges abandonados... todos estão clamando pelo resgate da Noiva de Cristo. Talvez a angústia deles seja mais bem resumida na ima­gem da Madona que chora. Numerosos ícones da Virgem Maria re­ceberam cobertura da mídia nos últimos tempos porque derra­mavam lágrimas, desafiando explicações racionais. Sem dúvida, ela está sofrendo por seus filhos, os anawin de Deus.
As Escrituras nunca afirmaram que Jesus não se casou, apenas omitiram informações específicas sobre sua esposa. Porém, como vimos, a ameaça física à sua família teria sido motivo suficiente para tirar o seu casamento do cenário. Devemos lembrar que a amada de Jesus sentou-se aos pés dele, sorvendo cada uma de suas palavras (Lucas 10:39), e que lhe ungiu os pés com suas lágrimas e os secou com o próprio cabelo (João 12:3). A Noiva arquetípica já ocupa o seu lugar, e uma nova consciência está criando raízes entre nós. A voz da Noiva está, finalmente, sendo ouvida no reino.
Quando me propus a desvendar a heresia do Graal, em 1985, não sabia aonde minha viagem me levaria. Na síntese de evidências que coletei na história, arte, literatura, psicologia e mitologia, os argu­mentos a favor da existência da Noiva Perdida foram aos poucos se cristalizando. Aonde quer que eu fosse, encontrava traços do femi­nino perdido e do desequilíbrio dos opostos, que se manifesta na imagem da terra devastada, do rei debilitado e da Madona de coração partido.
Em minha busca pelo Graal conheci mitos e lendas de muitas terras. Uma das que mais me encantaram foi uma antiga homenagem à deusa Maat. Ela é, com freqüência, retratada como uma gigantesca ave que segura o mundo inteiro em perfeito equilíbrio ao mesmo tempo em que porta uma pena com a qual poderia fazer a balança cósmica pender para qualquer um dos lados. Como não deseja que o universo perca o equilíbrio, ela continua a segurar aquela única pena por toda a eternidade.
Infelizmente, nos últimos milênios, a balança pendeu para o lado masculino, criando um desequilíbrio em todos os níveis. Por séculos, os profetas e os verdadeiramente sábios têm exortado a comunidade a ser misericordiosa e bondosa, uma vez que o próprio Deus expressa essas qualidades. Nesta Nova Era, talvez o princípio do Aguadeiro, o feminino, tenha influência suficiente para apagar o fogo alimentado por dois mil anos de orientação masculina do Logos e para começar a curar o deserto. É, sem dúvida, uma questão de assumir uma nova consciência. Quando a Noiva-Irmã for devolvida ao paradigma celeste como a Amada de Logos, então as feridas serão cicatrizadas, pois, como vimos, a origem de todas elas é a alienação e a separação desses dois arquétipos.
Lendas medievais dizem que o Graal foi perdido porque seus guardiões se mostraram indignos. Aos poucos, tanto a Igreja Católica quanto a secreta Igreja do Amor ficaram tão envolvidas na luta pelo poder, tão orientadas no sentido da "lâmina”, tão ansiosas por serem declaradas o verdadeiro veículo da mensagem de Deus, que acabaram por perdê-la. As duas facções empregaram a espada do impiedoso poder político para conquistar seus objetivos e, ao agirem dessa forma, conseguiram destruir a própria mensagem que levavam. Essa mensagem era o amor. No fim, nenhuma delas foi capaz de ouvir a Palavra de Deus, abafada pelo confronto de suas espadas.
Hoje, o feminino está se levantando para transmitir esse ensina­mento. Como a Bela Adormecida, finalmente despertada pelo beijo de seu príncipe, ele agora é capaz de articular a mensagem da li­gação com o Eros. O tema da linhagem é basicamente irrelevante, exceto no que se refere à questão da humanidade completa de Jesus.
Mas a consciência feminina ressurrecta continuará a mover-se na direção da parceria igualitária, apesar do mito do masculino do­minante que tem sido mantido há milênios.
Não sabemos o que a Igreja patriarcal da cristandade fará quan­do for descoberto que as lendas da Noiva Perdida de Jesus são pro­vavelmente verdadeiras. Talvez o Vaticano continue a negar que Jesus tenha sido casado. Mas também é possível que, diante das evidências, os padres decidam que é hora de receber a Noiva com uma jubilosa ação de graças. Talvez permitam que os sinos da Igreja toquem em todas as nações para anunciar o seu retorno em segu­rança e para lhe dar as boas-vindas em sua volta ao lar! Eles podem até decidir, finalmente, celebrar a ceia de casamento do Cordeiro. E, então, as vozes da Noiva e do Noivo serão ouvidas novamente no reino, e o deserto florescerá!
O deserto e a terra seca exultarão;
o solo árido se regozijará e florescerá (Isaías 35:1).
­
EPÍLOGO
O Sagrado Reencontro
Encoberta pela névoa do tempo,
ela aguarda sozinha no jardim,
velada, seu nome obscurecido,
a desamparada Rosa.
Contraparte perdida do Logos, a Palavra,
Filho do Pai,
razão e justiça,
eterno Ele.
Eros esquecido,
Eros apaixonado,
Eterna Ela,
deixada, prostrada, no chão.
"A Noiva é tão negra ­
porém formosa ­-
quanto as tendas de Quedar.
Não olhe para ela, pois que é morena,
o sol crestou-lhe a tez.
Lavrou nos vinhedos do irmão,
e a própria videira não guardou" (Cântico dos Cânticos 1:5-6).
A Noiva,
ressecada do labor
sob o sol ardente,
morena, seca e sem forças.
Madona Negra,
mãe dos pobres e aflitos,
uva ressecada de Deus,
queimada sob os impiedosos raios
do Logos vencedor, juiz, guerreiro.
Imagem masculina de um Deus soberano
no trono celeste ­-
sozinho.
Ela o buscou com avidez,
mas soldados avançaram sobre ela,
atacaram-na, feriram-na,
os guardiões dos muros.
Sua dor se espelha agora
no ícone de Czestochowa,
um talho em sua face,
a ferida, a desamparada ­-
a Delericta.
Nali Me Tangere:
"Não me toques."
Por séculos o eco:
Nali Me Tangere.
Aquele que ascendeu,
adorado e glorificado -
­intocável,
o belo príncipe,
Leão de Judá e Cordeiro de Deus
sentado ao lado do Pai,
governando ­-
sozinho.
Mas agora, finalmente, ele a busca.
Clama por ela.
Ele conhece o nome da Rosa.
Exausta e árida
na desventura,
ela o ouve gritar seu nome.
Emocionada, ergue a cabeça e olha ao redor.
"Quem está aí?"
O coração bate mais forte.
"Seria ele?
Teria voltado para me buscar?"
O jardim onde ele a deixou
é hoje um deserto ­-
ferido, seco e árido.
As árvores atrofiadas,
rios de águas claras
agora apenas córregos.
Um bosque de espinhos
cerca o jardim,
impedindo a entrada.
Com a espada da verdade
ele deve abrir caminho
para alcançar sua amada.
Afinal ele a encontra
ainda abraçada ao vaso de alabastro.
Suas lágrimas de alegria caem aos pés dele.
Mais uma vez, ela as seca com o próprio cabelo.
Mas agora ele pega a sua mão.
"Venha, amada minha, a hora é esta.
Vamos correr juntos pelos campos,
descobrir se o vinhedo está em flor" (Cântico dos Cânticos 7:13).
Agora, de mãos dadas,
eles caminham pelo jardim deserto.
E onde os seus pés tocam
uma violeta surge do chão,
uma anêmona se levanta.
Em seu despertar,
botões germinam nos galhos secos.
"Nunca mais te chamarão 'desamparada'
nem a tua terra se denominará 'desolada';
mas chamar-te-ão 'minha amada’,
e tuas terras, 'desposada'" (Isaías 62:4).
Ele sussurra o nome dela,
apreciando o sabor,
deliciando-se na Noiva de seus anseios.
Maria.

Nenhum comentário: